Do ouro imóvel ao dólar flexível

SERRANO, F. Do ouro imóvel ao dólar flexível. Economia e Sociedade. Campinas, v. 11, n. 2 (19), p. 237-253, jul./dez. 2002.

O ajustamento sem movimentos de ouro

  • Hipótese central: o país que emite a moeda-chave num padrão referido ao ouro de fato pode fechar o saldo de seu BP em sua própria moeda nacional, o que permite que ele tenha déficits globais no BP.
  • Duas coisas este país não pode deixar acontecer: 1) déficits de conta corrente crônicos; e 2) manter a paridade nominal (necessário que o preço oficial do ouro em relação à moeda local seja fixo em termos nominais, ou seja, não pode desvalorizar sua moeda).
  • Em uma economia fechada, o risco de default em relação à sua dívida interna é baixo, pois ela sempre pode ser paga em moeda de sua própria emissão. Assim, como o Estado é um devedor de risco zero, ele pode determinar exogenamente a taxa de juros da moeda que emite → abordagem sraffiana.
  • Graças ao risco zero, a taxa de juros determinada exogenamente por esse país determina a taxa de juros básica da economia internacional.
  • Balança de pagamentos do país central:

VO + VACP = X – M + RLX – VALP

  • O saldo global do BP desse país será a variação líquida do estoque de ouro (VO) somada à variação dos ativos externos de curto prazo (VACP). (Kindleberger, 1987)
  • X – M: balança comercial (incluindo serviços não-fatores)
  • RLX: saldo dos serviços de fatores
  • VALP: saldo dos fluxos de capitais de longo prazo
  • O importante é não haver déficits persistentes na conta corrente, para que o país central não perca ouro.
  • Déficit global no BP: como se trata do país central, esse déficit não cria problema algum, pois os demais países que em conjunto terão saldo positivo no BP não vão acumular ouro, mas aplicar em ativos de alta liquidez no país central. Assim, o saldo negativo do BP causado pelo grande VALP positivo é compensado pelo fluxo de endividamento de curto prazo (VACP negativo) e, portanto, as reservas em ouro não variam.
  • É possível contra-argumentar que nada garante que automaticamente toda saída potencial de ouro seja contrabalançada por uma entrada de capital de curto prazo de valor idêntico, porém é o país central que fixa a taxa de juros de CP autonomamente e opera para que o saldo da variação de ouro fique próximo de zero ou positivo.
  • Sucessivos déficits no BP do país central são acompanhados por equilíbrio na conta corrente, assim a variação do passivo externo líquido deste país é zero (VACP = VALP). Ainda, o país central estimula demanda efetiva no resto do mundo com seu déficit e, ao mesmo tempo, provê liquidez às demais economias centrais quando investe a LP e capta a CP.
  • As economias neste esquema podem crescer sem aumento de ouro, a base monetária em ouro está constante.
  • O multiplicador monetário do ouro é igual a 1 (porque os bancos não produzem ouro), mas com o crescimento contínuo de VACP e VALP (fluxos brutos de capital), a velocidade de circulação da moeda metálica cresce continuamente, mas não faltará liquidez ao sistema enquanto o BC do país dominante mantiver a total liquidez dos títulos desse país.
  • O sistema só funciona bem enquanto o ouro não se mover pra fora do país central e por essa razão este país não pode obter déficits em conta corrente persistentes, porque significaria situação de aumento do passivo externo.
  • Analisemos a relação:  X – M + RLX = (VO + VACP) + VALP
  • Se há déficits em CC o lado direito (variação do passivo externo líquido) vai ficar negativo, porque para o VO ficar igual a zero é preciso que VACP seja maior que VALP, ou seja, o país central vai captar a curto prazo mais do que aplica a longo prazo.
  • O país central não pode desvalorizar sua moeda, porque o que permite o financiamento dos déficits no BP é a plena conversibilidade entre sua moeda e o ouro. Se flutuar, os demais países vão exigir pagamentos externos em ouro ao invés de ativos financeiros na moeda em questão.

O padrão ouro-libra

  • Cronologia dos padrões monetários internacionais:
    1. O padrão ouro-libra (1819-1914);
    2. A tentativa de retorno a esse padrão (fim da I Guerra até anos 1930);
    3. O padrão ouro-dólar (pós-II Guerra até 1971);
    4. O período de crise (1971-1979);
    5. O padrão dólar flexível (1980-…).
  • Padrão ouro-libra: Inglaterra mantém a paridade de sua moeda em relação ao ouro, tem déficit comercial, não tem déficits em CC (tem superávits até 1914) e financia todo seu déficit da BP causado pela saída de VALP recebendo VACP do resto do mundo.
  • A Inglaterra possuía crescentes déficits de mercadorias em razão do protecionismo, dos ganhos de produtividade dos outros países industrializados e do câmbio fixo, mas isso era compensado pelos serviços não-fatores, pelo grande saldo positivo de mercadorias com as colônias e pela renda líquida recebida de seus investimentos no exterior.
  • A tentativa de retorno a esse padrão: o país central (a Inglaterra) já apresenta déficits em CC perdendo inclusive o saldo positivo com a Índia e assim tenta um retorno à conversibilidade à paridade antiga, que foi um fracasso diante da perda de competitividade inglesa e dos déficits externos obtidos com a guerra.
  • Assim, o ouro passou a fluir entre os anos 1920 e 1930 para os EUA, mas este não podia desempenhar o papel antes da Inglaterra. Nesse período, possuíam saldos positivos tanto na CC quanto na conta de capitais, atraindo ouro do mundo todo.
  • Visão ortodoxa neoclássica: o padrão ouro-libra funcionava automaticamente e levava ao equilíbrio externo de todos os países através de movimentos internacionais do ouro de países deficitários (causando deflação + ganhos de competitividade) para superavitários (causando inflação + perda de competitividade externa). Seu fim ocorreu por políticas e medidas protecionistas que desrespeitaram as “regras do jogo” (Hume).
  • O monetarismo primário de Eichengreen: atribuiu o fim do padrão ouro à falta de flexibilidade para baixo dos salários nominais nos países centrais, recorrendo à Polanyi para explicar a “rigidez nominal dos salários”. Na verdade, a flexibilidade ocorreu e foi excessiva, causando efeitos nocivos como a ampliação da taxa de juros real e a carga das dívidas, levando a falências e recessão.
  • O monetarismo global de Triffin: para ele o sistema jamais operou segundo as “regras”.
    • os vários países centrais tinham desequilíbrios de BP pequenos e seguiam todos o ritmo cíclico ditado pela liquidez internacional;
    • o câmbio fixo fazia com que os países centrais não crescessem muito mais nem muito menos que a situação de equilíbrio de sua BP;
    • em todos os países centrais a moeda fiduciária se expandiu com o desenvolvimento dos bancos, isso graças à liberação das reservas de ouro que saíam da circulação doméstica e iam para os bancos centrais;
    • a expansão da liquidez internacional até a I Guerra foi satisfatória para os países do centro, porque a quantidade de ouro nos bancos centrais cresceu o suficiente para atender o crescimento do comércio internacional;
    • o fracasso das tentativas de retornar ao padrão ouro tinha um motivo estrutural: a inadequação do crescimento e da distribuição internacional das reservas de ouro, que agora só podiam crescer com aumento na produção mundial de ouro.
  • Críticas à visão de Triffin:
    • parece que as economias centrais seguiam de fato um ritmo cíclico comum, entretanto havia uma clara assimetria em razão da liderança da economia inglesa (ditava as taxas de juros internacionais, usava da demanda efetiva de seu comércio exterior e financiava o comércio mundial através de seus fluxos de capitais).
    • o motivo dessa assimetria é que o padrão ouro era na verdade um padrão ouro-libra, onde a libra esterlina era a moeda internacional na prática, ou seja, a expansão do comércio e da liquidez internacional dependiam da expansão da economia inglesa e do sistema financeiro internacional baseado na libra, e não da disponibilidade de ouro, como acreditava Triffin.
    • considera que a expansão do comércio internacional necessita de volume de reservas de ouro crescente; que o ouro é a “base monetária” do sistema; que para a economia mundial o multiplicador monetário do ouro é sempre 1; e que a velocidade de circulação é sempre constante ou estável. Entretanto, para uma dada taxa de juros inglesa, um certo ritmo de expansão do crédito, da demanda efetiva e do comércio mundial, a razão entre ativos de CP em libra e ouro seria crescente o tempo todo.
    • o fim do padrão ouro-libra e o fracasso das tentativas de retorno estão mais ligados às suas consequências geopolíticas do que às limitações da expansão da oferta de ouro, como acreditava Triffin.

O padrão ouro-dólar

  • Os EUA inicialmente tinham saldo positivo com a implantação do padrão ouro-dólar , mas com o decorrer da Guerra Fria e o financiamento da reconstrução dos demais países centrais, os saldos comerciais e da conta corrente foram diminuindo até ficarem negativos em 1971.
  • Dilema de Triffin: o sistema monetário internacional com conversibilidade entre o dólar e o ouro padecia de uma inconsistência básica. O crescimento do comércio internacional requereria, para Triffin, aumento das reservas internacionais, o que poderia ser feito com os demais países acumulando reservas em dólar. Isso provocaria déficits globais na BP dos EUA, o que aumentaria a razão entre a quantidade de dólares em circulação na economia mundial e as reservas de ouro do país central. Com o tempo, ficaria sem lastro e inconversível. Resumindo:
    • Se o país central tem déficits persistentes, a conversibilidade e a sobrevivência do sistema ficam ameaçadas.
    • Se o país central evitar déficits mantendo o dólar com uma cobertura razoável em ouro, o comércio mundial pode não crescer satisfatoriamente por falta de liquidez internacional.
  • Triffin previu a ruína do sistema e defendia que fosse substituído por uma moeda de reserva verdadeiramente internacional.
  • No entanto, o dilema não ocorre, principalmente porque a conversibilidade do dólar em ouro não é ameaçada, já que apesar dos déficits na balança de pagamentos do país central, o ouro não se move, não muda de mãos.
  • Triffin levanta a hipótese arbitrária e monetarista de que a velocidade de circulação do ouro tinha que ser constante, assim teria que haver proporcionalidade entre ouro e ativos de CP denominados em dólar para que ocorresse a conversibilidade. O problema é que o autor ignora que os fluxos brutos de capitais internacionais fazem a velocidade de circulação de ouro crescer.
  • Privilégio exorbitante: expressão usada por De Gaulle para se referir ao privilégio dos EUA, que podiam financiar seu déficit no BP emitindo sua moeda sem lastro, logo, obtendo um ganho de “senhoriagem” internacional, que podia ser medido pelo tamanho do déficit na balança de pagamentos americana.
  • Os bancos internacionais também eram vistos como fonte de emissão de dólares para a economia internacional, assim o déficit da BP americano seria o aumento da base monetária internacional e que os bancos multiplicariam, criando a oferta monetária internacional. A senhoriagem seria dividida com os bancos.
  • Os americanos respondiam utilizando a tese de Kindleberger (1987), argumentando que na prática os bancos centrais dos países aliados retinham reservas em títulos públicos americanos, e não em dólares, e os EUA obtinham ganho na eventual diferença entre as taxas de juro de CP e as de LP, vistas como “de mercado”. Em suma: os EUA supriam um serviço (liquidez internacional) e recebiam a remuneração de mercado para isso, agindo como se fossem um banco comercial para o mundo.
  • Entretanto, o fato de os EUA emitirem moeda internacional dá um privilégio mais exorbitante do que calculado por Triffin, porque ao controlarem a emissão de moeda internacional agem como banco central do mundo e obtêm as mesmas vantagens que a Inglaterra no padrão ouro-libra, determinando a taxa de juros mundial sem restrições na sua BP.
  • Dilema de Nixon: os EUA queriam ao mesmo tempo desvalorizar o dólar sem comprometer seu papel como moeda internacional para desacelerar o declínio relativo de competitividade do país. Uma desvalorização aumentando o preço do dólar em ouro traria o risco de uma fuga para o ouro, que poderia trazer restrições ao BP americano se os pagamentos internacionais passassem a ser feitos somente em ouro. Isso também tinha o risco de países com grandes reservas de ouro aumentarem seu poder internacional, como a URSS.
  • Os países aliados propuseram reformas para a criação de uma moeda verdadeiramente internacional, através dos direitos especiais de saque (SDR), que foram vetadas pelos EUA, pois também reintroduziram restrições no seu BP. A solução tomada pelos Estados Unidos foi decretar unilateralmente a inconversibilidade do dólar em ouro em 1971.

O padrão dólar flexível

  • O fim do sistema de Bretton-Woods fez a economia mundial entrar em grande turbulência, gerando ondas especulativas num contexto em que a demanda efetiva e a liquidez internacional cresciam impulsionadas pelo crescimento da economia americana e pela expansão do circuito offshore do eurodólar.
  • A partir de 1973 iniciou a desvalorização do dólar, através da redução das taxas de juros americanas, o que desencadeou uma enorme onda especulativa de commodities que, aliado aos conflitos distributivos e questionamento da liderança americana, culminou nos choques do petróleo, levando à altas inflações.
  • Em 1979 houve mudança na política monetária americana com o choque dos juros de Paul Volcker, se tornando mais restritiva: taxas de juros atingem níveis sem precedentes e ocorrem ondas de inovações e desregulamentações financeiras, culminando no controle do sistema monetário-financeiro internacional pelos EUA novamente. A política restritiva diminuiu a inflação internacional aos poucos, mas provocou recessão mundial ao despencarem os preços das commodities.
  • Os demais países centrais viram-se obrigados a aceitar o novo padrão dólar flexível: o dólar continua sendo a moeda internacional, mas os EUA podiam financiar seus déficits com ativos denominados em dólar, com a vantagem de poder variar a paridade da sua moeda em relação às demais, através da mudança na taxa de juros americana.
  • Como o dólar é o meio de pagamento internacional e a unidade de conta nos contratos e nos preços dos mercados internacionais, também se torna a principal reserva de valor.
  • Os EUA não têm restrição externa e podem deixar seu déficit em CC crescer, mesmo perdendo competitividade quando o dólar se valoriza. Quando desvaloriza, o efeito inflacionário é mínimo, porque o mercado de commodities e petróleo tem preços fixados em dólares.
  • As principais vantagens do padrão dólar flexível para os EUA é a liberdade de fazer flutuar o dólar, pois assim não perdem em competitividade real, e a eliminação simples e pura de sua restrição externa, diante da ausência da conversibilidade em ouro.

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