Cuba since 1959

DOMINGUEZ, Jorge. Cuba since 1959. In: BETHELL, Leslie (Ed.). Cuba: A Short History. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 95-156.

  • Dominguez nos dá um panorama no mínimo peculiar da Revolução Cubana, considerando que ela aconteceu “somewhat unexpectedly” e dando margem à interpretação de que a queda de Batista foi um fenômeno isolado do movimento de guerrilha. Como o próprio autor diz “suddenly Batista was gone” e o poder simplesmente teria passado de uma mão para outra, agora para uma nova geração de cubanos.
  • O antigo regime colapsou e agora eram necessárias novas normas, regras e instituições. Esse processo iniciou através do desmantelamento do Exército oficial e dos partidos políticos, restando apenas o Partido Socialista Popular (PSP). Os próximos trinta anos, a partir de 1959, demandariam criatividade revolucionária, persistente comprometimento para criar ordem na revolução e compromisso com os ideais revolucionários.

A Consolidação do Poder Revolucionário (1959-62)

  • Os EUA viram com preocupação o que ocorria em Cuba, em razão da importância estratégica e econômica da ilha para os interesses norte-americanos. Ademais, em 1959, Cuba recebia o maior número de investimentos norte-americanos que qualquer outro país da América Latina, com exceção da Venezuela, além de, em termos de comércio, os EUA absorverem 2/3 das exportações cubanas e fornecerem ¾ das importações.
  • Inicialmente, Fidel Castro e o Movimento 26 de Julho, bem como outras forças revolucionárias, buscaram afirmar o nacionalismo em Cuba e as críticas aos EUA eram limitadas, segundo o autor, por motivos táticos, durante a fase de guerrilha.
  • As relações Cuba-EUA estavam pautadas, no início da Revolução, por três pontos:
    1. Havia desconfiança e raiva com relação às críticas norte-americanas sobre os eventos em Cuba. As relações tornaram-se pobres em razão do choque entre os valores dos revolucionários e os dos norte-americanos.
    2. Impacto inicial da Revolução nas firmas norte-americanas operando em Cuba. Os conflitos em decorrência da aplicação da reforma agrária se deram principalmente com a expropriação de terras de proprietários estrangeiros; tais “conflitos agrários locais” azedaram as relações EUA-Cuba.
    3. Mudança de atitude cubana com relação ao investimento estrangeiro privado e ajudas econômicas estrangeiras oficiais. Inicialmente Castro deu boas-vindas ao investimento estrangeiro e realizou uma visita oficial aos EUA, a qual segundo o autor, serviu para ganhar tempo para transformações mais amplas de uma forma específica que ainda estava incerta. Entretanto, um pequeno grupo de revolucionários concluíram que o choque com os EUA era inevitável.

A revolution would require the promised extensive agrarian reforms and probably a new, far-reaching state intervention in the public utilities, mining, the sugar industry and possibly other manufacturing sectors. Given the major U.S. investments in these sectors, and United States hostility to statism, revolution at home would inevitably entail confrontation abroad. (BETHELL, 1993, p. 98)

  • Junho de 1959: aprovada a Lei de Reforma Agrária, resultando na perda de apoio dos moderados. No mesmo mês, Guevara entra em contato pela primeira vez com a União Soviética, embora naquele momento o comércio bilateral com Cuba fosse insignificante.
  • As relações entre Cuba e EUA continuam a se deteriorar na segunda metade de 1959 por pequenos episódios em que um acusava o outro.
  • Em março de 1960 Eisenhower autorizou a CIA a organizar treinamento de exilados cubanos para uma futura invasão de Cuba.
  • Junho de 1960: refinarias estrangeiras recusam-se a processar o petróleo cru importado por Cuba da URSS. Castro então as expropria. No mesmo mês, o Congresso norte-americano autorizava o presidente a realizar cortes na compra da cota de açúcar de Cuba. Como resposta, Cuba expropria todas as propriedades norte-americanas em seu território.
  • Julho de 1960: Eisenhower cancelou a cota de açúcar de Cuba. Como resposta, seguem-se expropriações de empreendimentos norte-americanos nos ramos industrial e agrário, bem como confisco de todos os bancos dos EUA em Cuba. A reação dos EUA foi proibir exportações para Cuba, exceto gêneros alimentícios não subsidiados e medicamentos.
  • Janeiro de 1961: os EUA rompem formalmente relações diplomáticas com Cuba.
  • Em contraste, as relações com a URSS foram aprofundadas no mesmo período. Em 1960 foram assinados acordos bilaterais nas áreas econômica e militar. A URSS estava disposta a defender Cuba de uma possível invasão norte-americana e esta crescente colaboração militar Cuba-URSS aguçou as hostilidades dos EUA em relação a Havana.
  • A rápida e dramática mudança nas relações Cuba-EUA foi acompanhada pela reorganização dos assuntos econômicos e políticos internos de Cuba, a qual gerou dentre outras consequências uma migração massiva para os EUA. Politicamente, essa comunidade de exilados vai formar uma forte força anticomunista.

Most emigrantes came from the economic and social elite, the adult males typically being professionals, managers and executives, although they also included many white-collar workers. On the other hand, skilled, semi-skilled and unskilled workers were under-represented relative to their share of the work force, and rural Cuba was virtually absent from this emigration. This upper-middle- and middle-class emigration was also disproportionately white. (BETHELL, 1993, p. 100)

  • Esses exilados vão chamar a atenção do governo norte-americano, que vai passar a auxiliá-los na derruba de Castro. Em março de 1961, diversos líderes-chave dos exilados concordaram em formar um Conselho Revolucionário, cuja Brigada 2506 estava sendo treinada na Nicarágua e Guatemala. A administração Kennedy herdou o plano para a invasão do governo anterior e concordou em permitir à força de invasão treinada pela CIA avançar, tomando cuidado de que as forças norte-americanas não fossem utilizadas, de forma similar ao golpe dado em Arbenz na Guatemala em 1954. Esse episódio foi a invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, que foi derrotada em 48 horas pelas forças cubanas. Essa vitória de Castro foi importante para consolidar a revolução socialista.
  • A defesa de uma revolução radical em face ao ataque dos EUA demandava, segundo o autor, suporte da URSS. Em dezembro de 1961, Castro declara-se marxista-leninista e em julho de 1962, Raúl Castro, Ministro das Forças Armadas, viaja à URSS para garantir suporte militar adicional soviético. Em outubro de 1962, a URSS instalou 42 mísseis balísticos de médio alcance em Cuba, gerando uma crise nuclear sem precedentes desde o lançamento das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki. O desfecho da crise, entretanto, deu-se sem prévia consulta a Cuba, onde a URSS retirava suas forças estratégicas e em troca os EUA comprometiam-se a não invadir Cuba. Um entendimento sobre a questão veio a governar as relações EUA-URSS sobre Cuba. Como consequência, segundo o autor, ambos Fidel Castro e os oponentes exilados perderam o apoio de suas superpotências aliadas.
  • O ponto de inflexão na política interna de Cuba ocorreu em outubro e novembro de 1959, ou seja, antes de romper com os EUA ou dos primeiros tratados com a URSS. Os ingredientes internos dessa mudança, segundo o autor, foram a eliminação de muitos não-comunistas e anticomunistas da coalizão original e o choque do regime com os negócios. “Uma nova liderança consolidou a ordem centralizada e autoritária.” (p. 105)
  • Conforme os conflitos internos e internacionais aprofundaram-se durante 1960 e 1961, o governo desenvolveu seu próprio aparato organizacional. Tendo obtido controle sobre a FEU (Federación Estudiantil Universitaria) e a CTC (Confederación de Trabajadores Cubanos), a liderança estabeleceu uma milícia com dezenas de milhares de membros para construir apoio e intimidar inimigos internos. Nesse contexto, foram importantes a FMC (Federación de Mujeres Cubanas) e os CDR (Comités de Defensa de La Revolución), espalhados em cada cidade, quadra, fábrica ou centro. Em 1961 foi criado um novo partido comunista, a ORI (Organizaciones Revolucionarias Integradas), com membros do antigo Partido Comunista, o PSP. Os membros do PSP trouxeram conhecimento teórico sobre o marxismo-leninismo para a ORI, bem como funcionavam de ponte entre a liderança e a URSS. Em 1963, a ORI torna-se o PURS (Partido Unido de La Revolución Socialista).

Políticas Econômicas e Desempenho

  • A política econômica dos primeiros anos da Revolução era de uma rápida industrialização, pois a ultradependência na indústria de açúcar era vista como sinal de subdesenvolvimento. Essa estratégia foi arquitetada por Guevara enquanto Ministro das Indústrias.
  • Um plano de desenvolvimento foi formulado com a ajuda da União Soviética e países do Leste Europeu, mas, de acordo com Dominguez, Cuba não estava preparada para uma economia centralmente planificada. Os planos previam metas ambiciosas, mas o resultado foi que a economia colapsou em 1962, aprofundando-se em 1963, com a queda da produção de açúcar. A importação de maquinário e equipamento para a acelerada industrialização, associado ao declínio nas exportações de açúcar, geraram uma crise no balanço de pagamentos.
  • Em junho de 1963, Castro anuncia uma nova estratégia, desta vez voltada para a produção de açúcar e diminuindo os esforços para a industrialização. As expectativas em torno da colheita de 1970 eram grandes e mobilizaram todos os cubanos em um espírito nacionalista. A expectativa era de elevar para 10 mi de toneladas, mas alcançaram 8.5 mi.
  • De 1963 a 1970, ocorreu um debate de alto nível sobre a “natureza da organização econômica socialista”. Havia, de um lado, Guevara, que arguia que a parte da economia nas mãos do Estado era uma única unidade. A lei do mercado deveria ser eliminada para mover rapidamente para o comunismo e, nesse sentido, o planejamento central era crucial. De outro lado, argumentava que a parte da economia cubana possuída pelo Estado era uma variedade de empreendimentos independentes de posse do Estado e operado por ele. Dinheiro e créditos eram necessários para manter controles efetivos sobre a produção e avaliar o desempenho econômico. O primeiro modelo, portanto, requeria “extraordinary centralization”, já o segundo conferia maior autonomia para cada firma.
  • O debate foi encerrado com a saída de Guevara do Ministério das Indústrias em 1965, em suas jornadas na África e América Latina. Suas políticas, entretanto, foram totalmente adotadas e sua implementação foi levada aos extremos. O autor atribui, aí, a “calamidade” do desempenho econômico nos anos 1960 à “visão equivocada” de Guevara bem como ao caos administrativo desencadeado por Fidel Castro, como ele próprio reconheceria no discurso de 26 de julho de 1970.
  • O modelo requeria a centralização total da economia. Em 1963, houve uma nova lei de reforma agrária, passando 70% das terras para as mãos do Estado. O “clímax da coletivização”, segundo o autor, ocorreu em 1968 quando lojas, restaurantes, bares, etc passaram para o domínio e gerência do Estado. Paradoxalmente, o planejamento foi abandonado e, somente um plano setorial foi implementado de 1966 em diante, mas com poucos efeitos. O autor tece um panorama caótico da economia dos anos 1960 em Cuba.
  • As mudanças na política trabalhista foram igualmente “dramáticas”. A mudança dos incentivos materiais para uma ênfase nos “incentivos morais” significava que a consciência revolucionária do povo garantiria um aumento da produtividade, da qualidade e reduções dos custos. Os trabalhadores eram pagos da mesma forma, independente dos esforços ou qualidade e o dinheiro era visto como fonte de corrupção capitalista.
  • Tais mudanças foram acompanhadas de uma mudança estrutural maior no mercado de trabalho. O desemprego despencou, porque nos anos 1960 muitos desempregados foram alocados em empreendimentos do Estado, mas Cuba passou a sofrer com falta de mão-de-obra. “Inefficiency and under-employment were institutionalized in the new economic structures”. A produtividade por trabalhador despencou, enquanto emprego aumentava e a produção declinava. Havia, ainda, o fator sazonal da produção de açúcar. A interpretação do autor é curiosa, pois considera que o fato de o governo cubano ter empregado todos os trabalhadores durante todo o ano foi um dos incentivos para que eles “trabalhassem menos”.
  • Os incentivos morais, para Dominguez, não eram suficientes. O governo passou então a mobilização das massas para trabalhar nos campos de cana e outros setores da economia. Essa mobilização contou com voluntários e por membros das Forças Armadas, que, após derrotarem as forças internas em 1966, passaram a atuar diretamente nas atividades econômicas produtivas.
  • Nos anos 1970 o crescimento econômico de Cuba era sombrio. Duas duras recessões marcaram o início e o fim da década. Castro assumiu responsabilidade pelo desastre e mudou a polícia econômica. Um alívio para Cuba veio do mercado internacional, onde os preços do açúcar subiram de 3,68 centavos de dólar para 29,60 centavos em 1974, contribuindo para uma melhoria no desempenho econômico na primeira metade da década de 1970.
  • Paralelamente, ocorreu uma reforma interna na organização econômica, passando a adotar o modelo soviético. Assim, reapareceu em Cuba o planejamento central macroeconômico, levando a adoção de seu primeiro plano quinquenal em 1975, o qual, segundo o autor, foi “mais realístico que qualquer coisa que o governo tinha adotado antes” (p. 112).

A Revolução Cubana e a Questão da Revolução na América Latina

GUAZZELLI, Cesar Barcellos. A Revolução Cubana e a questão da revolução na América Latina. In: ______ História contemporânea da América Latina, 1960-1990. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 14-24.

  • A Revolução Cubana foi decisiva para o destino das nações latino-americanas bem como influenciou a postura do imperialismo norte-americano no tratamento das questões que envolviam o subcontinente. O processo revolucionário não tinha inicialmente o objetivo de incorporar o socialismo, mas conforme aprofundaram-se as reformas, a revolução se tornou anti-imperialista e acabou rompendo com o capitalismo.
  • A solução encontrada por Cuba para resolver a “dependência neocolonial” teve profundos impactos nos países latino-americanos. Num contexto de falência do pacto populista, aumenta o temor das elites de um exemplo cubano, as quais passam a refugiar-se nas Forças Armadas. A esquerda se reorganiza, abandonando práticas tradicionais e alianças com grupos “progressistas”, formulando “processos de ação revolucionária”.
  • A preocupação do imperialismo era minimizar os “efeitos deletérios” da Revolução Cubana em outras regiões. Para isso utilizou novamente da política do big stick, elaborou doutrinas de contra-insurgência e aparelhou as Forças Armadas da América Latina para combater o “inimigo infiltrado”. Na República Dominicana, houve intervenção direta.
  • Os projetos de Castro em “A história me absolverá” não se enquadram em “nada que signifique uma transformação socialista para Cuba” e compreendiam medidas como reforma agrária, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas e nos direitos da cana-de-açúcar, nacionalização dos trustes de telefonia e eletricidade e redução drástica dos alugueis.
  • Inicialmente, como membro do Partido do Povo Cubano (Ortodoxo), Castro não conseguiu atrair para seu projeto os militantes comunistas, mas obteve apoio de amplos setores populares durante as guerrilhas, pois, na medida em que liberavam uma região, imediatamente implantavam as reformas previstas, como reforma agrária e melhorias na condição de vida do povo, como assistência médica e escolas. Isso gerou confiança da população nos revolucionários em detrimento da oligarquia no poder. Outro resultado é que os próprios revolucionários aprendiam, neste processo, sobre as reais necessidades dos dominados e, assim, aprofundavam seu conhecimento sobre as reformas necessárias.
  • Imbuídos de enorme confiança popular, em 1959 os revolucionários tomam o poder e, neste primeiro momento, tomam medidas de combate à corrupção do governo Batista, como o desmantelamento da ampla rede de hotéis, cassinos e casas de prostituição controlada por norte-americanos aliados a Batista. Esse foi, segundo o autor, o primeiro ataque ao capital estrangeiro em Cuba.
  • Houve oposição de setores mais moderados que não estavam satisfeitos com as expropriações e controle de preços, dada suas posições de classe. Entretanto, com a “virtual ruptura do aparelho repressivo anterior”, com o desmantelamento dos órgãos policiais e das Forças Armadas, o Exército Rebelde era o poder de fato na Ilha, impedindo a reversão do programa revolucionário. (p. 17)
  • A resistência interna contou com o apoio dos EUA, cujos interesses foram contrariados com a nacionalização do truste telefônico, resultando, como represália, na prática clandestina de incendiar canaviais por parte da aviação norte-americana. O governo cubano confiscou, ainda, as terras da United Fruits, o que gerou nova retaliação, desta vez no porto de Havana.
  • Os EUA cortaram o fornecimento de petróleo à Ilha e impediram o refino por parte de empresas norte-americanas de petróleo soviético, o que levou Castro a nacionalizar companhias petrolíferas e um grande conjunto de bancos e empresas estrangeiras.
  • Além disso, os EUA suspenderam a compra de cana-de-açúcar de Cuba, o que obrigou o país a buscar novos parceiros econômicos, especialmente as nações do bloco socialista, levando Cuba a se tornar “um dos principais focos da Guerra Fria”.
  • Guevara conseguiu, em 1961, um contrato comercial com a URSS para aquisição de toda a cota de produção de açúcar cubano, assim como garantias de abastecimento de petróleo. Assim, desarticulou-se a principal “coação econômica norte-americana ao governo revolucionário cubano”, restando aos EUA intimidações políticas e militares.
  • Os EUA, então, rompem relações diplomáticas com Cuba, dando início a uma “virtual abertura de hostilidades”, com apoio a grupos dissidentes em território cubano, os quais fracassaram por não contar com o apoio popular.
  • Em abril de 1961 ocorre uma clara tentativa de intervenção, a invasão da Baía dos Porcos, a qual fracassou, pois houve “surpreendente mobilização das milícias populares” além da capacidade do jovem exército de derrotar a ameaça externa. Com esse episódio, desmentiu-se internacionalmente que a Revolução era impopular, bem como desmentia-se a presença norte-americana como fiadora da liberdade; e, internamente, serviu para uma maior coesão entre o comando revolucionário e a população. (p. 19)
  • Em 1962 é decretado o bloqueio continental à Revolução Cubana, segundo o autor, “primeira ocasião em que […] ficou demonstrada a importância da situação criada em Cuba para as demais nações latino-americanas”, pois o episódio seguiu-se de pressões dos EUA a todos os países da OEA, resultando no rompimento de relações diplomáticas com Cuba por parte destes, exceto o México e na expulsão de Cuba da OEA, colocada na posição de inimiga dos países americanos.
  • Na “Segunda Declaração de Havana”, Castro critica a submissão dos países latino-americanos aos EUA e alertava que os episódios de bloqueio continental seguido de expulsão de Cuba da OEA abriam um precedente para novas intervenções norte-americanas no subcontinente. Refutava, ainda, a acusação de que Cuba exportava a Revolução, pois “as revoluções as fazem os povos”. (p. 20)
  • Ainda em 1962, ocorre o que muitos autores consideram o clímax da Guerra Fria, a crise dos mísseis, que foi esvaziada graças a intensas atividades diplomáticas, como por exemplo a criação do Telefone Vermelho. EUA e URSS chegaram a um acordo onde os soviéticos retiravam os mísseis em troca do compromisso formal dos EUA de não invadirem Cuba.
  • Guazzelli considera que a Revolução Cubana, em três anos, “provocara uma guinada decisiva para a história de Cuba e uma influência internacional como poucos acontecimentos depois da Segunda Grande Guerra”. (p. 21). O programa de reformas implantado afastou os grupos dominantes internos e entrou em atrito com o imperialismo, daí que sua plataforma política conduziu a uma postura anti-imperialista e anticapitalista. Isso significou para a América Latina um novo paradigma em que, de um lado, havia um exemplo capaz de levar à luta socialista; e, de outro, havia a necessidade de conter “eventuais explosões revolucionárias”.

E se Fidel simbolizara a revolução vitoriosa e a resistência aos inimigos internos e externos, seria Ernesto “Che” Guevara o teórico da revolução latino-americana, capaz de fornecer os instrumentos que, uma vez vitoriosos em Cuba, possibilitariam a transformação socialista da América. (GUAZZELLI, 1993, p. 21)

  • As obras de Guevara, segundo o autor, criaram uma espécie de “abecedário da Revolução”, em que certa medida havia transposição da experiência maoista para a América Latina, mas sobretudo significava uma ruptura com o que as esquerdas latino-americanas pensavam sobre a Revolução.
  • A principal ideia era a de “foco guerrilheiro”, onde haveria “ativa e intensa interação” entre o grupo armado que desencadeia a luta e a população camponesa na região. Os guerrilheiros iriam funcionar como verdadeiros reformadores sociais, o que angariaria apoio popular para derrotar o Exército regular.
  • Segundo o autor, no entanto, houve uma “eufórica interpretação das chances de sucesso de um movimento armado” nos países latino-americanos, e o “guevarismo” tornou-se uma bandeira para tornar essas nações em múltiplos vietnames capazes de derrotar o imperialismo.
  • A história da Revolução Cubana, portanto, não se reproduziu na América Latina, porque as condições para uma insurreição camponesa eram muito diferentes de acordo com as realidades locais, o que foi admitido pelo próprio Guevara em seu diário na campanha da Bolívia, antes de ser morto.
  • De qualquer forma, ficou no imaginário da esquerda e provocou inclusive grande mudança de comportamento desta, que passou a entender os movimentos operários como apenas reformistas e a aproximação com grupos até então considerados progressistas ia perdendo sentido. Do outro lado da moeda, entretanto, os governos latino-americanos foram se tornando ditatoriais e militarizados com o apoio dos EUA para “o enfrentamento da ameaça que pairava”. (p. 24)

Cuba – Estados Unidos

AYERBE, L. F. Cuba – Estados Unidos: De Monroe a Reagan. In: ______ A Revolução Cubana. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 41-57.

América para os Americanos

  • Embora marcada pelo isolacionismo no século XIX, a política externa dos EUA estendeu esse conceito a toda a América Latina, criando a Doutrina Monroe em 1823, que fixava limites à intervenção de potências europeias no continente.
  • A Doutrina Monroe foi invocada explicitamente de 1823 a 1904, mas nunca deixou de integrar o pensamento dos formuladores da política exterior norte-americana. Durante esse período são formulados cinco corolários, sendo o mais famoso o de Theodore Roosevelt, de 1904, conhecido como Big Stick, utilizado para solucionar a questão da dívida externa da Venezuela, com seus portos bloqueados por esquadra de navios ingleses, alemães e italianos.
  • Theodore Roosevelt era influenciado pelas ideias de Mahan sobre geopolítica do poder naval e controle marítimo, daí a importância que os EUA passam a dar para a região do Caribe, considerada estratégica; segundo o autor, uma “terceira fronteira”.
  • O governo Theodore Roosevelt (1901-1909) será marcado por uma tentativa de hegemonia na região do Caribe. Em 1903, embasados na Emenda Platt, instalaram uma base militar em Cuba, em Guantánamo. A pedido do presidente cubano Estrada Palma, em 1906 os EUA ocupam Cuba pela segunda vez, para derrotar a “Revolução de Agosto” do Partido Liberal, abandonando a ilha somente em 1909.
  • Nos anos 1930, com Franklin Roosevelt na presidência, as relações hemisféricas foram pautadas pela “boa vizinhança”, a qual sofreu algumas adaptações com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, contexto em que os EUA passam a pressionar as nações latino-americanas para um envolvimento com os aliados e uma tentativa de proteção da região contra o Eixo, promovendo o isolamento de governos simpáticos ao nazifascismo.

Os Desafios do Mundo Bipolar

  • A Revolução Cubana se torna emblemática para os EUA no pós-Segunda Guerra, porque neste contexto eles se preocupavam com a possibilidade de expansão do bloco soviético e faziam o possível para contê-lo.
  • O governo Eisenhower (1953-61) perseguiu esses objetivos ao derrubar o primeiro-ministro do Irã em 1953, em razão de sua política nacionalista com relação ao petróleo; e ao intervir na Guatemala contra o presidente eleito em 1954, que ao realizar reforma agrária, contrariava aos interesses da United Fruit.
  • O governo Kennedy (1961-63) gera uma inflexão no intervencionismo de Eisenhower, segundo o autor, e propõe a promoção de reformas econômicas e sociais, embora sem abandonar políticas preventivas e repressivas. Essa iniciativa foi cristalizada na Aliança para o Progresso (ALPRO) de 1961, criada para a implementação de políticas de reformas estruturais na América Latina e Caribe. Quanto à prevenção de novas revoluções como a cubana, reforçou-se a política de treinamento e aparelhamento das forças repressivas.
  • Entretanto, em abril de 1961 os EUA colocam em prática o plano de intervenção em Cuba, deixado pela administração anterior. Uma expedição partindo da Guatemala invadiu a Baía dos Porcos e foi rapidamente derrotada pelas forças cubanas, que fizeram prisioneiros. O fracasso da invasão desencadeia um “processo de radicalização nas relações entre Cuba e os Estados Unidos”. (p. 49)
  • No final de 1961, Kennedy autoriza a Operação Mangusto, envolvendo ações clandestinas de sabotagem, guerra econômica e atentados contra autoridades. Cuba torna-se uma obsessão no interior da administração Kennedy e isso só se intensifica com a descoberta de mísseis soviéticos na ilha. Em outubro de 1962, os EUA impõem o bloqueio naval a Cuba, incluindo barcos comerciais. O fim da crise dos mísseis se deu através da negociação, em que a URSS comprometeu-se a retirar os armamentos e os EUA comprometeram-se em não invadir Cuba.
  • A questão que se impõe, segundo o autor, é o fato de novamente, assim como na guerra pela independência de 1898, Cuba não ter participação nas negociações para o desfecho da crise, mesmo sendo um episódio que afetava seu destino como “nação soberana”. (p. 51)
  • Finda a crise dos mísseis, Kennedy retoma as ações encobertas contra Cuba, que previam diversas modalidades de atentados terroristas, os quais não foram implementados, embora em 1963 o governo autorizasse algumas operações de sabotagem.
  • Che Guevara irá criticar a ALPRO na reunião da OEA em 1961, argumentando que o foco da iniciativa não era o desenvolvimento econômico da região, mas apenas suprir deficiências básicas. Segundo sua visão otimista, Cuba poderia crescer 10%, enquanto a OEA projetava um crescimento de 2,5% para a América Latina e Caribe.
  • Após o assassinato de Kennedy, assume o vice-presidente Lyndon Johnson (1963-69), cujas preocupações recaem cada vez mais sobre o Vietnã, enquanto na América Latina reforçam-se as saídas não institucionais, com o apoio do Pentágono e da CIA no combate encoberto aos inimigos dos EUA. Nesse período a via do militarismo irá recair em golpes na Argentina, Brasil, Peru, Bolívia, Guatemala, Honduras e República Dominicana.

A Emergência do Processo Revolucionário

AYERBE, L. F. A emergência do processo revolucionário. In: ______ A Revolução Cubana. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 21-39.

  • A história da Revolução de 1959 está atrelada à trajetória nacional, cujos antecedentes se encontram nas duas guerras de independência travadas ao longo de trinta anos.
  • A primeira guerra de independência foi de 1868, sob a liderança de Manuel de Céspedes, até 1878, com a derrota das forças de Antonio Maceo, considerado pelo autor como integrante do “setor radical”, devido à associação da independência com o fim da escravatura na ilha.
  • A abolição só se dará em 1880 por influências externas (como da Inglaterra) e por razões econômicas, como os interesses norte-americanos em controlar o setor exportador de Cuba, além da precária situação dos grandes proprietários nacionais, que buscavam se modernizar.
  • Após a sua guerra civil, os EUA despontam no cenário internacional e buscam novas matérias-primas na região do Caribe. Cuba passa a ter uma relação de dependência não só com a Espanha, mas também com os EUA, além de ter alterado a estrutura produtiva cubana, concentrando terras e engenhos e gerando uma casta de “colonos”.
  • A segunda guerra de independência inicia em 1895 com a chegada de Máximo Gómez e José Martí a Cuba, que se juntaram às forças de Antonio Maceo e mobilizaram amplos setores populares, conquistando importantes vitórias. Martí morre em 1895 na Batalha de Dois Rios e Maceo em 1896 também em combate. Os EUA, então, decidem intervir no conflito em 1898, após o incidente com o navio Maine.

“A guerra durou poucos meses. Em 12 de agosto, a Espanha assina um armistício com os Estados Unidos em Washington e em 10 de dezembro um tratado de paz em Paris, em que reconhece a independência de Cuba, transfere aos Estados Unidos a posse de Porto Rico e Guam, e o controle das Filipinas em troca do pagamento de vinte milhões de dólares.” (AYERBE, 2004, p. 24)

  • As negociações pela independência de Cuba entre EUA e Espanha se dão sem a participação de líderes cubanos, além de a ilha ter sido ocupada por tropas norte-americanas e por um governo provisório até 1902, quando toma posse o primeiro presidente de Cuba, Tomás Estrada Palma, do PRC (Partido Revolucionário Cubano), de Martí. Além da ocupação, os EUA impõem a Emenda Platt, que permite aos norte-americanos intervirem em Cuba com a escusa de se preservar a independência.
  • O autor aponta que a presença dos EUA na independência de Cuba trouxe elementos diferenciados em relação às demais independências latino-americanas, onde a questão nacional imbricou-se em uma realidade onde havia um “colonialismo em retração” e um “novo imperialismo emergente”. Além disso, a presença norte-americana frustrou os líderes revolucionários, contribuindo para a formação de uma “singular consciência nacionalista”.

A Conquista do Poder

  • Fulgencio Batista lidera um golpe militar em 1952, fechando as portas da via institucional para que se efetuassem mudanças socioeconômicas. Entre as lideranças que reivindicavam tais mudanças, estava Fidel Castro, do PPC (Partido do Povo Cubano) ou Ortodoxo, criado em 1947, a partir da ruptura do PRC, governista.
  • Fidel vinha denunciando a corrupção nos governos Grau San Martin (1944-48) e Prío Socarrás (1948-52) e tinha favoritismo para vencer as eleições, o que motivou o golpe de 1952, com o apoio dos EUA.
  • Batista anteriormente tinha sua figura associada com a luta contra a ditadura de Gerardo Machado (1925-33), segundo o autor, “catalisadora de um rico processo de organização política da sociedade cubana”, porque neste período surgiram importantes lideranças do movimento estudantil. Houve apoio das massas e de partidos políticos à luta antiditatorial, inclusive no interior do Exército, onde no “movimento dos sargentos” Fulgencio Batista começa a ganhar destaque.
  • Em 1940, Batista assume a presidência até 1944, sob um regime que, embora autoritário, não era continuidade do machadismo. Contou com o apoio do Partido Comunista, em razão da sua posição pró-aliados, e com a oposição do PRC, vinculado a partidários de Grau San Martin.
  • O autor considera que a Revolução Cubana é um movimento oposicionista cujos desdobramentos “inaugurarão uma nova fase da história política latino-americana” e isso foi desencadeado pelo golpe de Fulgencio Batista.
  • Organizaram-se movimentos de resistência com a luta armada sendo o principal “método de ação política”, haja vista a frustração com a expectativa de vitória nas eleições de 1952. Os atores sociais vieram novamente da universidade, dentre eles Fidel Castro.
  • Fidel e outros cubanos encontravam-se frustrados e desconsertados com o golpe de Batista e tinham forte convicção de que o retorno da normalidade democrática passava pela derrubada deste regime. Sua primeira ação revolucionária foi o assalto aos quartéis de Moncada e Bayamo, em Oriente.
  • O assalto a Moncada (1953) não obteve sucesso, com a aparição inesperada de uma patrulha do Exército, levando à baixa de 90 homens dos 135 que compunham o grupo e à prisão de Fidel e Raul Castro.
  • Preso, Fidel escreve “A História Me Absolverá”, documento em que consta, além de sua defesa e de sua ação insurrecional, um programa conhecido como “programa de Moncada”, no qual propõe um conjunto de cinco leis revolucionárias, além de defesa da reforma agrária, de reforma do sistema educacional e nacionalização de empresas que prestam serviços públicos.
  • O programa de Moncada ficou conhecido como o “programa da revolução”, e buscava solucionar problemas como a falta de liberdade e democracia, a questão da terra e das condições precárias da população. Em termos econômicos, busca melhorar o desempenho econômico de Cuba através de uma mudança na estrutura da propriedade e defendia um processo de industrialização no país.
  • Em 1959, a participação de Cuba no mercado norte-americano era de 33% enquanto as importações cubanas dos EUA correspondiam a 75%. Os indicadores sociais mostram que o desemprego praticamente duplicou de 1953 para 1956-57. (p.32)
  • Cuba era naquele momento um país desigual, mas com indicadores que demonstravam uma situação semelhante aos países latino-americanos mais desenvolvidos, como por exemplo: em número de carros por habitante, a ilha ocupava em 1958 o sexto lugar no ranking mundial; em número de televisores, o primeiro lugar na América Latina e Caribe; em quarto lugar em termos de estações de rádio e salas de cinema e terceiro lugar em termos de investimentos diretos recebidos dos EUA.
  • Entretanto, apenas alguns setores se beneficiavam da estrutura desigual do sistema econômico cubano, tais como a aristocracia rural, a burguesia vinculada à especulação imobiliária, a indústria turística e uma classe média formada por profissionais liberais e funcionários do Estado.
  • Havia uma forte influência do capital norte-americano que controlava a produção de açúcar, usinas, refinarias de petróleo, sistema telefônico e de eletricidade. Mesmo assim, o documento produzido por Fidel não confrontava os EUA, mas preocupava-se em atacara as oligarquias nacionais e o regime político que representa essa classe.
  • Batista decide legitimar seu regime, convocando eleições em 1954, em que ele era o candidato único. A partir dessa “abertura restrita”, e junto à pressão popular, estabeleceu-se a anistia para os presos políticos em 1955. Fidel então parte para o México, mantendo sempre contato com o movimento 26/07 (M-26/07), que enviará militantes para se juntar ao grupo que retornará a Cuba para iniciar a luta armada.
  • A expedição pretendia chegar a Cuba em 30 de novembro, no navio Granma, onde contaria com o apoio do M-27/07 que deveria promover um levante popular, porém o navio atrasou e foram atacados por forças de Batista dois dias depois. Após, dispersaram-se em pequenos grupos e partiram para Sierra Maestra.
  • A nova estratégia era a ação guerrilheira no campo, buscando apoio da população mais pobre, o que se cristaliza com a implantação da reforma agrária nos territórios ocupados. Em 1957, o grupo se divide em três colunas comandadas por Fidel, Raul e Che.
  • As ações armadas no campo obtêm algumas vitórias e paralelamente na cidade a oposição moderada passa a assumir posições mais radicais, como o caso do Diretório Estudantil, que atacou o Palácio Presidencial, mas seus militantes foram derrotados pelas forças oficiais.
  • O M-26/07 apresenta o Manifesto de Sierra Maestra, redigido por Fidel com o objetivo de unificar as oposições a Batista. Neste documento, refuta-se qualquer interferência externa nos assuntos de Cuba e clama por mudanças econômicas (reforma agrária, industrialização).
  • O movimento de resistência urbano organiza uma greve geral para 9 abril de 1958, mas ela fracassa e Batista decide lançar uma ofensiva contra a guerrilha, contando com 10 mil soldados, mas o Exército é obrigado a recuar após mil baixas.
  • Inúmeros movimentos das forças de oposição se reúnem na Venezuela e assinam o Pacto de Caracas, condensando três prioridades: estratégia comum de luta via insurreição armada; conduzir o país após a queda do tirano à normalidade democrática e constitucional; e, um programa mínimo de governo. Solicitava aos EUA que cessassem todo tipo de ajuda ao governo de Batista.
  • As forças de guerrilha, neste momento, incorporam contingentes de outras organizações, como o Diretório Revolucionário e o Partido Socialista Popular (antigo Partido Comunista). Em agosto desencadeia-se a ofensiva final com uma marcha militar em direção a Havana. Em 31 de dezembro Batista renuncia e as forças revolucionárias assumem o poder.

Da Rebelião à Revolução

  • O golpe de Batista de 1953 significou um processo de fechamento, excluindo da vida política cubana importantes setores da sociedade. A ditadura contou com apoio interno, o “establishment econômico”, e externo, os EUA.
  • O movimento inicial buscava derrubar o regime de Batista através de uma insurreição popular para restaurar a normalidade institucional, mas a derrota inicial desperta uma nova consciência nos revolucionários, que passam a refletir profundamente sobre as raízes socioeconômicas do sistema de dominação que imperava no país.
  • Após a chegada do Granma, inicia-se uma nova fase opositora, que contou com grande apoio de setores populares do campo e da cidade insatisfeitos com a deterioração de suas condições de vida, aliado a uma crise nos setores dominantes, que viviam uma divisão nas bases de sustentação do regime, além dos fracassos militares.
  • A rebelião contra Batista vem acompanhado de uma processo de mudança social, que se iniciou com as primeiras experiências de reforma agrária, primeiros passos de uma “revolução social”.
  • Entretanto, o autor não atribui a eclosão da Revolução à insatisfação da população com as condições de vida em rápida deterioração, porque “apesar dos indicadores de pobreza e precariedade do emprego”, Cuba pré-revolucionária continha sinais de modernização superiores aos demais países da região. O processo se desencadeou graças a um grupo de insurgentes com “três qualidades excepcionais”: grande capacidade de organização; capacidade de “abertura negociadora” em relação aos setores insatisfeitos das elites; comprometimento com os anseios dos setores populares em prol de reformas estruturais.

A Tentativa de Maximização do Poder pelos Estados Unidos da América Através da Organização Mundial do Comércio

Artigo produzido para a cadeira de Direito Internacional Econômico, em 25 de junho de 2010, sob a orientação do Prof. Dr. Fabio Costa Morosini

ABSTRACT: This article aims to analyze U.S. intentions using the World Trade Organization (WTO) and other international institutions such as NATO and United Nations in order to build and maintain its “global hegemon” status. The underlined unilateral decisions under the WTO, UN and NATO demonstrate lack of dialogue with other countries and a clear power-maximizing behavior. This article also emphasizes Dispute Settlement cases in the WTO as examples of U.S. disrespect or its attempts to support the highest power in the international system since the end of the World War II. Besides it was analyzed that WTO cases under agreements like GATT, GATS, TRIPS and other international juridisction documents regarding international trade law.

1. O Cenário Pós-Segunda Guerra Mundial e a Consolidação da Bipolaridade

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo antes do lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, os Estados Unidos da América já despontavam como a maior nação vencedora do conflito, além de a menos prejudicada, senão favorecida por ele. A vantagem americana, fruto de um relativo isolamento político-diplomático do Entre-Guerras, o qual se revelou estratégico (aos moldes do isolacionismo realizado antes da Primeira Guerra Mundial), da entrada na guerra somente após o ataque de Pearl Harbor (ou seja, apenas há quatro anos do término do conflito), e, mesmo após a definitiva declaração de apoio aos Aliados, os EUA contaram com o isolamento geográfico, que permitiu a este país sofrer danos em seu território e em sua população praticamente desprezíveis (se compararmos aos que a Europa, a União Soviética ou o Japão, por exemplo, sofreram), contribuiu não somente para um crescimento da economia americana, mas para a sua afirmação como potência hegemônica preponderante e flagship do modelo capitalista.

Enquanto a URSS tentava se recuperar do quase letal conflito, no qual teve seu território praticamente destruído, sua população em condições de extrema miséria e desilusão diante da perda de inúmeros compatriotas (apesar dos ganhos diplomáticos e da consequente ampliação da sua esfera de influência por várias partes do globo) e o continente europeu recebia a ajuda do Plano Marshall para a recuperação econômica de países também deveras afetados por terem sido, como os soviéticos, palco de batalhas da Segunda Grande Guerra, o sistema internacional se configurava para uma bipolaridade de caráter ideológico, a rivalidade capitalismo versus socialismo, protagonizada, respectivamente por Estados Unidos e União Soviética até meados dos anos 90.

Logo após a assinatura dos tratados de paz visando a encerrar oficialmente a Segunda Guerra e a discutir sobre a organização de um novo cenário mundial, articulados em conferências como Yalta (fevereiro de 1945), Potsdam (julho de 1945) e Washington (outubro de 1945), os Estados Unidos lideraram um movimento pela construção de entidades internacionais reguladoras da nova ordem, causa que já vinha sendo defendida e estrategicamente difundida por Roosevelt, embora limitada até mesmo pelo contexto da guerra (HILLGRUBER, 1995). Assim, no imediato pós-guerra (ou até mesmo um pouco antes dele) verificou-se a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), em julho de 1944, do Banco Mundial, em dezembro de 1944, a construção da Organização das Nações Unidas (ONU), através do Tratado de Washington, assinado em 1945, da Corte Internacional de Justiça, no mesmo ano, a assinatura do Acordo sobre Tarifas e Comércio (GATT) – equivalente na época à Organização Mundial do Comércio, em 1947, a fundação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948, e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949. Em suma: emergiram organizações internacionais, para os mais diversos fins – políticos, militares, jurídicos, sócio-culturais, diplomáticos, financeiros ou comerciais –, em um momento em que se delineavam os primeiros traços da Guerra Fria, onde era vital para os EUA tomar posição de dianteira a frente de tudo o que fosse novo e benéfico para a ampliação do seu poder, aproveitando-se da posição vantajosa que obtivera com o final da Segunda Guerra Mundial.

A URSS, por sua vez, apesar das dificuldades mencionadas, possuía uma esfera de influência considerável – Alemanha Oriental, países do Leste Europeu, Ásia Central, Extremo Oriente e enclaves no Centro da Europa e em outras partes do mundo – o que lhe rendeu o status de potência semi-hegemônica no continente europeu (HILLGRUBER, 1995) e de potência hegemônica a nível mundial, com paridade de poder potencial em relação aos EUA. Isso significa, sob uma ótica neo-realista, que a União Soviética realizou, primeiramente, o que Kenneth Waltz chamava de balanceamento por esforços externos, ou seja, ampliou o seu poder através de um cinturão de países em diferentes partes do mundo ligados por uma ideologia comum: o socialismo, e que, de certa forma, abdicavam do status de potência regional ou de aspirantes à hegêmona global, por estarem conscientes da superioridade bélica americana (DINIZ, 2007) e, assim, optarem por ficar embaixo do “guarda-chuva soviético”, que lhes protegia em um período onde uma nova guerra não era desejável por nenhum dos blocos.

Os antagonismos entre URSS e EUA se ampliaram drasticamente, em primeiro lugar porque o presidente Truman adotara uma política agressiva (em detrimento da anterior coexistência pacífica de Roosevelt), o que levou os dois países – e consequentemente, os dois blocos do sistema internacional – a uma competição desenfreada e ao próprio desencadeamento do período denominado Guerra Fria (PECEQUILO, 2005). Se no imediato pós-Segunda Guerra (especificamente de 1947 até 1950) os gastos norte-americanos com armamentos foram reduzidos, período em que os EUA não necessitavam ampliar sua capacidade bélica por deslumbrarem de uma superioridade absoluta, a partir dos anos 50, todavia, o quadro reverteu-se graças à paridade estratégica atingida pelo líder do bloco opositor, a URSS (anexo I).

Completamente imersos no sistema internacional e com uma política externa voltada para a expansão global, através da Doutrina Truman, os EUA tentam ampliar sua hegemonia através de duas estratégias: a criação de novos órgãos ou acordos para aumentar sua influência, através do engajamento dos países em nível global, sob seu protetorado – ANZUS (Acordo de Segurança Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia) e CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) em 1951, OTASE (Organização do Tratado do Sudeste Asiático) em 1954, Pacto de Bagdá em 1955, Tratado de Roma em 1957, OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em 1961 – e a tentativa de evitar a ascensão de potências regionais, mesmo que dentro do seu próprio bloco, ou de qualquer organização que contrariasse princípios de liberalização global (PECEQUILO, 2005). Uma exceção à segunda estratégia foi a Europa, em que cujo continente a integração regional revelou-se deveras benéfica aos interesses norte-americanos, conquanto a CECA, e depois a CEE (Comunidade Econômica Europeia), fornecia coesão ao oeste europeu, facilitando a influência e o controle econômico e militar pelos EUA, através do argumento da cooperação e do engajamento dentro da bipolaridade (PACAUT; BOUJU, 1979).

2. A Consolidação do Sistema Internacional Unipolar

O grande debate em Relações Internacionais após o final da Guerra Fria gira em torno das discussões sobre o atual status em termos de poder dos Estados Unidos da América no sistema internacional: seriam hoje eles uma espécie de hegêmona global e a ordem internacional estaria configurada como unipolar (DINIZ, 2007)? Ou, então, os EUA não passam de uma potência hegemônica em um cenário onde coexistem outras potências com possibilidade de chegarem ao mesmo patamar, o que configuraria o período como transição para uma multipolaridade (LEMKE, 2004)? Não havendo resposta precisa para tais questões e, mesmo existindo, diante do relativo dinamismo do sistema internacional em se alterar em um curto prazo (o que não ocorria nos séculos anteriores), é possível que hoje estejamos vivendo um sistema unipolar e na próxima década um multipolar, bem como nos anos seguintes, retornarmos a uma unipolaridade (de outro hegêmona) e assim por diante. Logo, ou isso nos comprova a existência de movimentos cíclicos de ascensão e declínio de grandes potências, como argumenta Paul Kennedy, ou uma única potência pode perpetuar-se por um longo período no topo do sistema internacional sem qualquer explicação plausível para isso, que não sejam as suas próprias habilidades (esforços internos ou externos) de manter-se em tal status.

De qualquer forma, consideremos que hoje estamos vivendo uma ordem unipolar, na qual os Estados Unidos da América são o único hegêmona global (apesar de não negarmos a existência de aspirantes a tal posto, mas com intenções não-explícitas: China, por exemplo) e que eles desejam se perpetuar como “polícia do mundo” por um longo período (PECEQUILO, 2001). Assim, para consolidar sua hegemonia global, os EUA tentam se auto-afirmar no plano internacional, utilizando-se (e reutilizando-se com mais força), no cenário pós-Guerra Fria, das instituições internacionais já mencionadas, sendo isso claramente verificado em duas delas — a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) — e uma terceira — a Organização das Nações Unidas (ONU) —, que serve apenas para colaborar formalmente com os interesses americanos. Esta, embora desrespeitada pela administração Bush (2001-2008), segue como escudo político na diplomacia para com opositores à tentativa americana de consolidação no poder internacional.

Tudo levava a crer que a OTAN seria extinta após o fim da Guerra Fria, como o foi o Pacto de Varsóvia, que constituía a organização militar equivalente no lado soviético. No entanto, além de o acordo de cooperação militar entre as potências do Atlântico Norte não ter sido desfeito, ele foi reforçado, ampliado e teve seu caráter renovado (VIZENTINI, 2002). Primeiramente, a OTAN constituía um acordo militar estratégico de defesa e segurança do bloco ocidental no cenário da bipolaridade, sob a liderança americana. Com o fim da URSS e o desmantelamento do bloco socialista, extinguiu-se imediatamente o Pacto de Varsóvia, no entanto a OTAN manteve-se intacta e, anos depois, passou a incorporar ex-membros do bloco soviético e a afirmar-se como uma espécie de única instituição de defesa internacional permanente, haja vista que as tropas da ONU são formadas por exércitos dos próprios países-membros, o que lhe confere um caráter muito distinto daquela, mais fragmentado, desarticulado e esporádico.

3. A OMC como Instrumento de Ampliação do Poder Norte-Americano

Muitos autores e juristas no campo do Direito Internacional Econômico ou Comércio Exterior argumentam que a Organização Mundial do Comércio, criada em 1994, a partir do Tratado de Marrakesh, constitui um mecanismo internacional democrático, que visa a uma maior integração dos países a partir da liberalização econômica, reduzindo as desigualdades e tornando o livre comércio mais justo em escala global. Ora, considerando-se que este é o objetivo da OMC, na prática, percebe-se uma clara atuação contrária por parte dos países desenvolvidos, especialmente os EUA, os quais fazem claramente uso de medidas protecionistas e subsídios à agricultura, por exemplo. Nesse sentido, países emergentes como Brasil, Argentina, África do Sul e Índia têm lutado desde o início da Rodada de Doha, inaugurada em 2001 no Catar, pelo fim do protecionismo norte-americano a seus produtos agrícolas possibilitando, assim, a maior equidade (que teoricamente resultaria da total liberalização do comércio internacional) que os nortistas tanto pregam, mas na prática não cumprem.

Os casos levados à OMC pelas economias do G20 contra os EUA, sendo o Brasil vitorioso em muitos deles, são inúmeros. Tomando por base apenas as consultas a partir de 1995, podemos fazer uma breve análise de quantos deles foram respondidos pelos Estados Unidos da América e, requeridos por países principalmente emergentes ou em desenvolvimento. Em 1995, temos como mais relevantes os casos: 1) DS24 — Restrições nas Importações de Algodão e Fibras Sintéticas para Roupas de Baixo[1] — reclamado pela Costa Rica, onde os EUA violaram o ATC (Acordo sobre Têxteis e Vestuário) e o Artigo X:2 do GATT/1994; 2) DS2 e DS4 — Critérios para Gasolina Reformulada e Convencional — reclamado por Venezuela e, posteriormente, por Brasil, onde os EUA violaram o TBT (Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio) e o artigo I e III do GATT/1994. Em 1996, observamos os seguintes casos: 1) DS32 — Medidas Afetando a Importação de Casacos de Lã Femininos — requerido pela Índia, a qual argumentou estarem os EUA usando medidas de salvaguardas contra a importação desses produtos, violando os artigos 2, 6 e 8 do ATC, bem como o caso paralelo, DS33 — Medidas Afetando a Importação de Camisas e Blusas Femininas — também requerido pela Índia, sob a mesma argumentação, contra os EUA; 2) DS38 — Ato de Liberdade e Solidariedade Democrática Cubanas (Libertad Act, de 1996) — reclamado pelas Comunidades Europeias, que reivindicavam o fim deste ato de restrições imposto pelo Congresso Americano contra produtos oriundos de Cuba e negação de visto para cidadãos cubanos em território americano, o que, para as CE, eram medidas inconsistentes com o Acordo da OMC, violando o artigo 4 do Entendimento sobre Regras e Procedimentos que regem a Solução de Controvérsias (ESC), além de ferir os Artigos I, III, V, XI e XIII do GATT e os Artigos I, III, VI, XVI e XVII do GATS. Faremos uma pausa na análise estatística dos exemplos de casos nos quais os Estados Unidos da América foram respondentes na OMC, em virtude da relevância do último caso citado — o DS38 — devido ao seu caráter político, pois a resolução da consulta requerida pelas Comunidades Europeias foi simplesmente ignorada, sob a seguinte argumentação: “The Panel’s authority lapsed on 22 April 1998, pursuant to Article 12.12 of the DSU.”

Analisemos, assim, o que diz o artigo 12.12 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC, o DSU em inglês):

“The panel may suspend its work at any time at the request of the complaining party for a period not to exceed 12 months. In the event of such a suspension, the time-frames set out in paragraphs 8 and 9 of this Article, paragraph 1 of Article 20, and paragraph 4 of Article 21shall be extended by the amount of time that the work was suspended. If the work of the panel has been suspended for more than 12 months, the authority for establishment of the panel shall lapse.” (JACKSON, 2002)

A decisão do painel prescreveu em 1998, ou seja, os EUA não foram obrigados a abdicar do Ato restritivo contra Cuba, também conhecido como Lei Helms-Burton, — e que prejudicava o livre comércio, a partir do momento em que foi imposto a todos os países que realizavam comércio com os cubanos — em um cenário já pós-Guerra Fria, mas que provavelmente atendia aos interesses norte-americanos de não encerrar os embargos contra a ilha. As Comunidades Europeias, majoritariamente favoráveis e complacentes às decisões da política externa americana (PECEQUILO, 2005), por mais que estivessem sendo prejudicadas (por não poderem comprar açúcar de Cuba, por exemplo), preferiram deixar o prazo expirar, segundo os procedimentos do painel apontados no Artigo 12 do ESC. Em suma, foi conveniente para as CE não enfrentarem os EUA em uma disputa que tinha apenas um pano de fundo econômico, porém na realidade o escopo trazia à tona os fantasmas da Guerra Fria e a negação do reconhecimento do regime de Fidel Castro pelo nosso então considerado hegêmona global.

Os Estados Unidos, portanto, descumpriram claramente as suas obrigações internacionais ao implantar a Lei Helms-Burton, visando a renovar o embargo contra Cuba, que remonta a 1962 e à Administração Kennedy, em um cenário claramente bipolar e distinto do contexto de 1996, já com uma instituição internacional reguladora das questões comerciais — a OMC, na qual Cuba ingressou como membro em 1994. No entanto, embora não tendo embasamento jurídico internacional para embargos e sanções que a Administração Clinton vinha realizando, tais medidas foram de fato aplicadas e as reações (da União Europeia, da América Latina — através do Grupo do Rio e até mesmo do Canadá) foram completamente desprezadas e minimizadas através de acordos diplomáticos por parte dos EUA com os insatisfeitos.

Em 1997, citam-se como exemplo os seguintes casos: 1) DS89 — Taxação Antidumping sobre Receptores para Televisores Coloridos (RTCs) Importados da Coreia do Sul — reclamado pela Coreia do Sul, sob a argumentação de que há 20 anos os EUA vinham adotando medidas antidumping sobre os RTCs sul-coreanos, o que violava os Artigos VI.1 and VI.6 (a) do GATT/1994 e os Artigos 1, 2, 3.1, 3.2, 3.6, 4.1, 5.4, 5.8, 5.10, 11.1 e 11.2 do Acordo Anti-Dumping; 2) DS97 — Estados Unidos – Investigação de Medidas Compensatórias da Importação de Salmão do Chile — reclamado pelo Chile, a partir da investigação iniciada pelo Departamento de Comércio dos EUA sobre direitos compensatórios contra a importação de salmão chileno, o que, para o Chile, violava o Artigo 4 do ESC e o Artigo XXII.1 do GATT, além de a decisão de iniciar a investigação sobre subsídios, segundo o reclamante, também contrariar os Artigos 11.2, 11.3 e 11.4 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias; 3) DS111 — Estados Unidos – Quotas para Importação de Amendoim — reclamado pela Argentina, a qual argumentou terem os EUA adotado uma interpretação restritiva do acordo bilateral firmado na Rodada do Uruguai, por ambos os países, o que, segundo o reclamante violava os Artigos II, X e XII do GATT/1994, os Artigos 1, 4 e 15 do Acordo sobre Agricultura, o Artigo 2 do Acordo sobre Regras de Origem e o Artigo 1 do Acordo sobre Licenças de Importação. Os dois últimos casos (DS97 e DS111), segundo os documentos disponibilizados no sítio da OMC, não foram ainda solucionados.

Em 1998 temos um caso de relevância para este estudo, que tenta reproduzir uma análise não apenas amostral da participação ininterrupta norte-americana como respondentes na Organização Mundial do Comércio, mas também a relativa ineficiência da aplicabilidade prática dos inúmeros acordos para os EUA. Trata-se do DS136 — Estados Unidos – Ato Antidumping de 1916 — reclamado pelas Comunidades Europeias, sob a alegação de que os Estados Unidos ainda faziam uso de tal Ato de 1916, atitude que contrariava, primeiramente, o Acordo que estabeleceu a OMC em seu Artigo XVI:4, que diz o que se segue:

“Each Member shall ensure the conformity of its laws, regulations and administrative procedures with its obligations as provided in the annexed Agreements.”  (Art. XVI:4 – AGREEMENT ESTABLISHING THE WORLD TRADE ORGANIZATION)

Além disso, a atitude americana violava os Artigos III:4, VI:1 e VI:2 do GATT/1994 e os Artigos 1, 2, 3, 4 e 5 do Acordo Antidumping, segundo a argumentação das Comunidades Europeias.  O caso, no entanto, apesar de ter sido levado à OMC em 1998, só teve instalação de painel em 1999, sendo que os EUA (quando perderam a causa) levaram o contencioso ao Órgão de Apelação, pedindo para que as decisões do painel fossem analisadas, sob os seguintes argumentos: 1) a respeito de violar o Artigo VI do GATT, o painel errou por falta de jurisdição:

“In each dispute, the complaining party invoked the jurisdiction of the Panel pursuant to Article 17 of the Anti-Dumping Agreement. However, when Article 17 of the Anti-Dumping Agreement is invoked as a basis for a panel’s jurisdiction to determine claims made under that Agreement, it is necessary for the complaining party to challenge one of the three types of measure set forth in Article 17.4 of that Agreement, i.e., a definitive anti-dumping duty, a provisional measure or a price undertaking.” (WT/DS136/AB/R – REPORT OF THE APPELATE BODY – WTO)

2) O painel errou também ao considerar o Artigo VI do GATT separadamente do Acordo Antidumping, o que, para os EUA, constituem um “pacote inseparável de direitos e obrigações, em que um não pode ser invocado independentemente do outro.”; 3) O painel interpretou e aplicou a distinção entre “legislação mandatória” e “legislação discricionária” e não há respaldo para isso nas jurisprudências da OMC ou do GATT;  4) O painel equivocou-se ainda ao achar que, interpretando o Artigo VI do GATT pelo Acordo Antidumping, isso se aplicaria ao Ato de 1916; 5) A palavra “pode” no Artigo VI:2 do GATT confirma que tal artigo oferece um direito que os membros, do contrário, não teriam — o direito de impor obrigações — mas não contém qualquer proibição quanto ao uso de outros tipos de medidas. No entanto, o Órgão de Apelação manteve todas as conclusões do Painel, considerando, portanto, o Ato de 1916 inconsistente com as obrigações americanas para com o Artigo VI do GATT/1994 e para com o Acordo Antidumping.

Mesmo assim, os Estados Unidos solicitaram uma extensão de tempo para cumprir as decisões do Painel, solicitação esta que expiraria em dezembro de 2001, porém não foi acatada, tendo manifestado intenção de atender às decisões somente em abril de 2002, apesar das pressões das Comunidades Europeias e do Japão (que também levara o caso à OMC através do DS162, tornando-se segundo reclamante).  Os EUA encaminharam as recomendações ao Congresso, que, até setembro de 2003, não havia ainda anulado o Ato de 1916, o que levou as EC a reativarem procedimentos de arbitragem contra os americanos, resultando, assim, na resolução do caso somente em fevereiro de 2004. Contudo, pergunta-se por que os Estados Unidos arrastaram o caso por seis anos na OMC em defesa de um ato antidumping do início do século do XX? Por que relutaram tanto em dissolver uma medida tipicamente protecionista, sem respaldo na OMC/GATT em uma época de intensificação do processo de globalização, processo este liderado pelos próprios EUA? A explicação mais plausível parece ser a de que os Estados Unidos adotam uma postura do tipo “façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço.”

Por fim, a breve análise de alguns casos de 1995 a 1998, período embrionário da Organização Mundial do Comércio, revela que os EUA, por mais que preguem o livre-comércio e a liberalização da economia em escala global, não efetivamente aplicam tais princípios quando acreditam que uma ou outra medida poderá prejudicar os interesses de seus nacionais. Os objetivos norte-americanos, quais sejam, manter-se como maior (e única) potência comercial e, diante deste poder de influência a partir das relações econômicas, fazer uso de um poder político estrategicamente articulado, herança da posição vantajosa com que saíram da Guerra Fria, têm sido defendidos, administração após administração, e principalmente através de instituições internacionais como a OMC, ainda que desrespeitando ou fazendo uso de todas as artimanhas possíveis para garantir seus interesses.

4. O Cenário Pós-Guerra Fria e a Consolidação da Globalização

Os Estados Unidos, desde a década de 1990, além de terem se tornado hegêmona global, foram responsáveis pela construção e manutenção da nova ordem, baseada na intensificação e consolidação do processo de globalização, que, por sua vez, remonta à década de 1970 e ao neo-capitalismo. Esse período se caracterizou pelo surgimento da revolução científico-tecnológica, a qual desencadeou a III Revolução Industrial, acelerou a dinâmica dos fluxos econômicos, desenvolveu de forma impressionante os transportes e as comunicações, aproximou os povos, criou relações de interdependência jamais vistas entre as nações, permitiu o surgimento de empresas transnacionais, da circulação cada vez mais veloz de ativos financeiros por diversas partes do mundo, da consequente marginalização social e exclusão política do Terceiro Mundo, da criação da mass media e a respectiva aquiescência e aceitação cada vez maior com relação ao sistema, da preocupação ambiental e a concentração crescente de capital por empresas de países desenvolvidos, majoritariamente norte-americanas (DUVERGER, 1975).

Em suma, com nascimento no início nos anos 70 do século passado e com ápice no cenário pós-Guerra Fria, a globalização passou a reger a nova ordem mundial, encabeçada pelos Estados Unidos e com uma adesão cada vez maior de países ao “novo” sistema.

“The driving idea behind globalization is free-market capitalism — the more you let market forces rule and the more you open your economy to free trade and competition, the more efficient and flourishing your economy will be. Globalization means the spread of free-market capitalism to virtually every country in the world. Therefore, globalization also has its own set of economic rules — rules that revolve around opening, deregulating and privatizing your economy, in order to make it more competitive and attractive to foreign investment. In 1975, at the height of the Cold War, only 8 percent of countries worldwide had liberal, free-market capital regimes, according to the World Bank. By 1997, the number of countries with liberal economic regimes constituted 28 percent, and foreign investment totaled $644 bilion.” (FRIEDMAN, 1999, p. 9)

Neste cenário de globalização e de intensificação dos fluxos comerciais, cabe retornarmos nossa análise à Organização Mundial do Comércio e à participação norte-americana. Os exemplos de disputas comerciais expostos antes se enquadram todos dentro da Administração Clinton (1993-2000) e o que percebemos foi uma baixa adesão prática dos EUA aos acordos e deliberações da OMC/GATT e uma alta capacidade de estender o contencioso o maior tempo possível. Isso é interessante por dois motivos: 1) a doutrina que rege a OMC, instituída em 1994, é totalmente americana, o que lhes permite um maior grau de atuação, por estarem mais familiarizados com ela e pelo fato de a língua ser a mesma de seu país; 2) a aparente posição dos EUA com relação à OMC parece ser de indiferença à reciprocidade e demasiado uso do condicionamento para os outros países.

Com a Administração Bush (2001-2008) não foi diferente e, atualmente, com Obama (2009-…) não o está sendo mais uma vez, pois independentemente de os EUA serem liderados por Republicanos ou Democratas, a sua política externa voltada à defesa de seus interesses econômicos tem sido pouco ou quase nada alterada dentro do processo de globalização, desde o final da Guerra Fria. Vale lembrar que — retornando ao caso inicialmente citado, sobre o embargo a Cuba — tanto Bush quanto Obama renovaram o embargo a certos produtos cubanos. Uma maior ou menor abertura da economia, aumento de subsídios agrícolas e artifícios obscuros para defender a economia interna (ou até mesmo prejudicar a de outrem) são recursos americanos em maior ou menor grau em tempos de crise econômica ou de abundância. Assim, o soft power americano, por trás dos ideais de expansão da democracia e da defesa das liberdades, carrega consigo atitudes não tão dignas de serem exemplo de uma nação que pretende se perpetuar como hegêmona global e os maiores exemplos podem ser encontrados na participação norte-americana na OMC.

É interessante notar a repercussão que, nos últimos anos, os casos levados à OMC têm gerado na mídia brasileira, como se cada vitória comercial do Brasil fosse motivo de comemoração. Obviamente quando se considera que a justiça impera, havemos de comemorar, porém o que está por trás — e jornalistas não conseguem, ou não se interessam em esclarecer isso — é que não haveria a necessidade de se disputar com os EUA, ou com qualquer outro país, se estes cumprissem a priori todos os acordos internacionais firmados, sem tentar burlar-los com intenções — como no caso dos EUA — de se manter no topo do sistema internacional a qualquer custo. Portanto, ao invés de comemorarmos, deveríamos lamentar o fato de o líder de uma nova ordem articulada com base em instituições internacionais desrespeitar um modelo por ele próprio criado e defendido até então.

A disputa mais “recente” (desde 2002, mas só resolvida em 2010), em que os EUA perderam para o Brasil, foi a DS267 — Estados Unidos – Subsídios ao Algodão — em que o Brasil acusou os EUA de fornecerem subsídios no setor algodoeiro, o que viola os Artigos III:4 e XVI do GATT/1994, os Artigos 3.3, 7.1, 8, 9.1 e 10.1 do Acordo sobre Agricultura e os Artigos 3, 5 e 6 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias. Foi uma longa disputa, na qual o Brasil saiu vitorioso, com direito à retaliação a produtos norte-americanos. Porém, por mais que países ainda considerados em desenvolvimento (ou emergentes) — especialmente Brasil, Índia, África do Sul, Argentina e México, por exemplo, que possuem pouco poder decisório em termos de política internacional — saiam vitoriosos sobre os EUA em disputas comerciais na OMC, até que ponto é interessante, para economias tão interdependentes, criarem atritos comerciais (que podem fácil e rapidamente se tornarem controvérsias diplomáticas) com o maior PIB do planeta? Até que ponto os custos de uma retaliação a um hegêmona global traz mais benefícios do que prejuízos (pelo desgaste das relações entre os dois países) no jogo de poder do sistema internacional globalizado?

Conclusão

Desde a criação do GATT, em 1947, até a criação de uma instituição internacional no âmbito comercial, que deveria ser “reguladora” do comércio internacional, a OMC, em 1994, percebe-se que o mundo se alterou abruptamente: a ordem mundial deixou de ser bipolar para tornar-se unipolar (ou transição para uma multipolaridade), as relações comerciais intensificaram em uma escala jamais antes vista, graças à Revolução Científico-Tecnológica que originou o fenômeno da globalização e os EUA despontaram como a maior potência de todo o globo, característica que optamos por designar como “hegêmona global”.

Em face ao seu status de único hegêmona, desde o final da Guerra Fria, em 1991, os Estados Unidos, sob uma relativa prepotência, tem desrespeitado eles próprios diversos acordos internacionais, especialmente no âmbito da OMC, que foi objetivo deste artigo (embora isso seja facilmente verificado em outras instâncias, como a ONU, por exemplo), enquanto, por outro lado, tentam condicionar um comportamento de adesão às instituições internacionais (OTAN, OMC, ONU e outras). A ambiguidade do comportamento norte-americano em sua hegemonia foi explicitada, portanto, através do desrespeito à Organização Mundial do Comércio na tentativa de usar tal instituição como ampliadora de seu poder a nível mundial.

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Anexos

Anexo 1

us-military-spending


[1] Optou-se por uma tradução própria dos títulos dos casos analisados, ao invés de se manterem os originais em inglês.