Alinhamento e desenvolvimento associado (1946-1961)

CERVO, A.; BUENO, C. Alinhamento e desenvolvimento associado (1946-1961). História da Política Exterior do Brasil. Brasília: EdUnB, 2002, p. 269-307.

Dutra e o alinhamento na Guerra Fria

  • Chanceler do período: Raul Fernandes.
  • Pós-guerra: Brasil e América Latina sob hegemonia norte-americana, graças ao “plano” implantando na década de 1940, que se refletia nas esferas econômica, política e cultural.
  • O “plano norte-americano” não se restringia à conjuntura da guerra, mas visava à conquista de mercados e fortalecimento de sua própria economia para consolidação de seu “sistema de poder”.
  • Naquele contexto os EUA haviam se tornado um dos “polos do poder mundial” e deram prioridade a um sistema planetário de segurança que deixava em segundo plano a América Latina.
  • Diferentes concepções sobre a cooperação para o desenvolvimento: EUA recomendavam usar o BIRD e o Brasil queria ajuda de caráter político.
  • Missão Abbink (1948): comissão técnica Brasil-EUA organizada para estudar a situação econômica do país e apresentar propostas para o seu desenvolvimento.
  • Nos aspectos político e militar, houve “completo alinhamento” com os EUA: visita oficial de Truman ao Brasil (1947) e de Dutra nos Estados Unidos (1949), primeiro presidente a visitar oficialmente os EUA.
  • Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR (1947): integrava o sistema interamericano ao sistema mundial, prevendo mecanismos de manutenção da paz e da segurança no hemisfério; significou o alinhamento da América Latina ao bloco de poder ocidental.
  • Ruptura de relações diplomáticas com a URSS após a cassação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), gerando ataques da imprensa estatal soviética ao governo brasileiro e levando à deterioração das relações.
  • Brasil-China: o governo brasileiro fechou embaixada e consulado após a derrota de Chang Kai-Chek; Brasil acompanhou o voto dos EUA na ONU votando contra a entrada da República Popular da China, embora Osvaldo Aranha fosse pessoalmente favorável.

O segundo governo Vargas e a pressão nacionalista

  • Chanceler do período: João Neves da Fontoura.
  • Contexto interno: polarização entre nacionalistas e entreguistas; “populismo”, nacionalismo e anti-imperialismo passam a integrar o discurso político da época.
  • IV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos (mar/abr 1951): o governo americano solicitou esse encontro, preocupado com o comunismo internacional e seu possível avanço sobre a América Latina; assim apresentou um “plano de mobilização econômica” e pediu às nações latino-americanas que o adotassem.
    • O Brasil apresentou um memorandum com uma série de reivindicações para uma maior cooperação com o subcontinente e para um projeto de desenvolvimento para o país.
    • Vargas cobrou dos EUA o “ônus aos recursos das nações menos desenvolvidas” gerado durante a Guerra e tentava utilizar a fidelidade brasileira e sua atuação no conflito como barganha para obter ajuda econômica.
    •  Havia uma nova postura na política externa brasileira, que depois seria retomada na Operação Pan-Americana e na Política Externa Independente da década seguinte: o Brasil queria cooperação americana para seu desenvolvimento e argumentava que assim se evitaria a “agressão interna”, a revolução, enfim, a penetração do comunismo.
    • Resultados políticos: não houve divergências, referendaram a atuação da ONU na questão da Coreia.
    • Resultados militares: recomendou às nações do hemisfério preparação militar orientada à “defesa do continente” e repressão de eventual agressão.
    • Resultados econômicos: divergências, pois o plano de mobilização econômica americano previa utilizar as matérias-primas das nações latino-americanas, o que foi contestado pelo Brasil, preocupado com o desenvolvimento. Os EUA cederam às reivindicações dos países menos desenvolvidos e consideraram o desenvolvimento econômico como “elemento essencial” para a defesa do continente.
  • Comissão Mista Brasil-Estados Unidos: criada em 1950, mas só instalada em 1951 após negociações bilaterais com o governo americano na IV Reunião de Consulta. O objetivo era integrar técnicos e economistas dos dois países para formular projetos de cooperação econômica. Presidente: Horácio Lafer.
    • Vargas tomou duas medidas nacionalistas durante o funcionamento da Comissão: enviou ao Congresso projeto de criação da Petrobrás e regulamentou as remessas de lucros ao exterior.
    • Em 1952, a Comissão aprovou 41 projetos, na área de transportes e energia, financiados pelo Eximbank, BIRD e capitais europeus. Em contrapartida, o Brasil forneceria “minerais estratégicos”.
    • Em 1953, a Comissão foi extinta, com a ascensão dos republicanos e Eisenhower no poder.
    • Os resultados foram positivos apenas no longo prazo, pois seus projetos seriam incorporados no plano de metas de JK.
    • Plano Lafer (ou Plano de Reaparelhamento Econômico), originou da Comissão e previa importação de máquinas/equipamentos com empréstimos do BIRD e Eximbank, embora não tenha sido aplicado integralmente.
  • O acordo militar e os minerais atômicos: por iniciativa norte-americana, Brasil e EUA assinam um Acordo de Assistência Militar Recíproca (1952), mudança de postura dos EUA em razão da Guerra da Coreia, contexto em que ficariam responsáveis pela defesa do continente e forneceriam armas, financiamento e treinamento para os países da AL. Em contrapartida, o Brasil deveria fornecer “matérias-primas estratégicas”.
    • Brasil ficava numa situação de dependência dos EUA com relação à aquisição dos equipamentos e treinamento; debate ideológico: nacionalistas consideraram que só beneficiava os EUA; para o MRE, era benéfico em termos militares e do desenvolvimento econômico; os partidários do alinhamento aplaudiram.
    • Guerra da Coreia: Vargas recusou-se a enviar tropas, em desacordo com a solicitação da ONU (1951) e apenas contribuiu com “minerais estratégicos”. A recusa agradou em parte aos nacionalistas.
    • Fev 1952: outro acordo com os EUA para venda de “minerais atômicos” (monazita, cério, terras raras), tendo como contrapartida financiamentos para o desenvolvimento do país. Não houve “compensações específicas”, no sentido de transferência de tecnologia para possível uso da energia atômica no país. Em 1954, o Brasil fez outro acordo com os EUA para exportar tório em troca de trigo.
    • Havia divergências entre integrantes do governo e das Forças Armadas sobre a “política atômica”, bem como entre CNPq e Itamaraty, refletindo-se no Congresso.
    • Resultados: Brasil fica dependente dos EUA também no aproveitamento de materiais atômicos; deterioração dos termos de troca no comércio entre os dois países; forte presença cultural norte-americana e em investimentos muito acima dos outros países geraram o discurso anti-EUA.
  • Algumas medidas nacionalistas de Vargas teriam desagradado aos EUA e possivelmente contribuído para o suicídio de Vargas: criação da Petrobrás (1953), decreto-lei que limitava em 10% as remessas de lucro ao exterior (1954) e o projeto da Eletrobrás (1954). Tais medidas incomodar o Departamento de Estado, mas segundo Bandeira “inexistem provas sobre a participação oficial norte-americana”.

O hiato Café Filho

  • Chanceler do período: Raul Fernandes
  • Ministro da Fazenda: Eugênio Gudin, liberal; tendência simpática ao capital estrangeiro; buscou empréstimos nos EUA, mas lá persistia a concepção de que os países deveriam buscar financiamentos privados para seu desenvolvimento.
  • Acordo sobre “excedentes agrícolas” (1955): Brasil compraria cereais em cruzeiros a uma taxa fixa, em contrapartida os EUA emprestariam o produto desta venda ao BNDE. Intercâmbio comercial melhorou.
  • Acordos na área de energia atômica (1955): acordo de cooperação para uso civil da energia atômica e Programa Conjunto de Cooperação para o Reconhecimento dos Recursos de Urânio no Brasil, visando a um levantamento das “províncias uraníferas brasileiras” através de técnicos norte-americanos.
  • Os acordos sofreram restrições, dentro da política “Átomos para a Paz” de Eisenhower. Isso desagradou aos nacionalistas e gerou debates com os liberais.
  • Os acordos produziram resultados “satisfatórios” já em 1956 e apresentavam compensações específicas em decorrência do Atomic Energy Act (1954), em que os EUA passaram a transferir conhecimentos nessa área. Também outros países da AL assinaram acordos semelhantes, refutando a tese do entreguismo.
  • O governo foi acusado pelos nacionalistas de ter atendido aos interesses americanos na política atômica e isso gerou uma CPI no Congresso em 1956.
  • Em termos de política exterior, Café Filho representou um retorno ao governo Dutra e destacou-se pela política atômica, marcada por intensas divergências entre os militares e o Itamaraty na questão das compensações.

Juscelino Kubitschek: rumo à diplomacia brasileira contemporânea

  • Chanceleres do período: José Carlos de Macedo Soares, Negrão de Lima e Horácio Lafer sucessivamente.
  • Acreditava-se que o contexto externo poderia solucionar a situação de subdesenvolvimento em que se encontrava o país. Para sair do “atraso”, era preciso reformas internas para atacar problemas como 1) a necessidade de receber capitais e tecnologia; 2) a deterioração dos termos de troca; 3) ampliação do mercado externo para aumentar a capacidade de importar bens/equipamentos para o desenvolvimento.
  • O governo JK é considerado “nacional-desenvolvimentista” e seu projeto de desenvolvimento previa ampla participação do capital estrangeiro, o que implicou em políticas para sua atração em uma conjuntura internacional favorável.
  • Nos últimos anos de governo, diante de desequilíbrios externos e deterioração dos termos de troca, passou a adotar uma política de fomento às exportações, já que a capacidade de importação do país havia aumentado, e de atração da poupança externa.
  • Operação Pan-Americana (1958): iniciativa brasileira a partir de troca de cartas entre JK e Eisenhower, resgatando o ideal “pan-americanista” e conclamando por solidariedade política para enfrentar, através do desenvolvimento e do fim da miséria, ameaças de ideologias “exóticas” e “anti-democráticas”.
    • O contexto na América Latina, no entanto, era de antiamericanismo e anti-imperialismo → hostilidades ao vice Nixon em Caracas e Lima (1958).
    • JK sempre se referia ao desenvolvimento da América Latina como um todo, não apenas o Brasil e desejava “formar ao lado do Ocidente, mas não desejamos constituir seu proletariado”.
    • A OPA visava à luta contra o subdesenvolvimento em escala global, não apenas no sentido econômico.
    • Foram propostos estudos para aplicação de capitais privados em áreas atrasadas do continente, fortalecimento das economias internas, disciplina do mercado de produtos de base, entre outros.
    • JK enfatizava a importância de capitais públicos em razão do elevado montante para setores básicos e de infraestrutura.
    • Criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID (1960), com capital inicial de 1 bilhão de dólares para financiamento e assistência técnica, com participação de 20 países americanos.
    • Criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio – ALALC (fev 1960), entre Brasil, Argentina, México, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, com objetivo de promover a “estabilidade” e a “ampliação do intercâmbio comercial”, desenvolvimento de novas atividades, aumento da produção e “substituição de importações”.
    • Aliança para o Progresso: resposta tardia do presidente Kennedy, na conjuntura da crise de Cuba, à ideia da OPA.
    • Críticas de Osvaldo Aranha: falta de conversão das propostas em resultados práticos; modelo desenvolvimentista de JK muito fundado na industrialização, ignorando a agricultura e a reforma agrária.
  • Defesa da agroexportação nos organismos internacionais lutando pela estabilização dos preços dos produtos primários e denunciando a “injustiça” do comércio internacional.
    • 1957: Brasil reage apreensivamente à formação do Mercado Comum Europeu, em razão da concorrência desigual que geraria entre as exportações do país e as oriundas do territórios “não-autônomos”, e levou sua posição junto ao GATT.
    • Horácio Lafer apresentou um memorando à Comunidade Econômica Europeia (CEE), reclamando sobre a tarifa comum que incidia em mercadorias originários de países fora da comunidade e pleiteando por sua redução para países da América Latina.
    • Conferência Internacional do Café (1958): objetivo de racionalizar as relações de comércio para evitar os “males” advindos de flutuações bruscas. Foram firmados acordos para criação de uma OI do café.
    • Aproximação comercial com a URSS: enviada uma Missão (1959), num contexto de excedentes de café e do início da “coexistência pacífica” entre EUA e URSS. Assinatura de acordo comercial de compensação: venda de café em troca de trigo, petróleo e diesel. → reações na opinião nacional. Osvaldo Aranha se mostra favorável e considerava que o Brasil não deveria se isolar.
  • Relações com a África: acompanhou a posição dos colonialistas na ONU e passou “ao largo” do processo de libertação das nações africanas que foi decisivo justamente entre 1958 e 1960, não assumindo posição veemente de condenação do colonialismo, embora defeendesse a “auto-determinação” dos povos. Mesmo assim no Relatório do MRE de 1960 consta que o Brasil reconheceu a independência de 17 países africanos.
  • Relações com a Ásia: estabelecidas relações diplomáticas com a República da Coreia e com o Ceilão (1960) e abertura de embaixadas.
  • Relações bilaterais no Cone Sul: Acordos de Roboré (1958), firmados com a Bolívia.
    • Tratados sobre vinculação ferroviária e exploração do petróleo (1938) → Comissão Mista Brasil-Bolívia de Petróleo (1952) → presidente Estenssoro repõe a questão a Café Filho (1955) → embaixador do Brasil na Bolívia Teixeira Soares propõe “negociação global” das relações (1956) → Missão Especial (1957) → início das negociações entre os chanceleres dos dois países em Corumbá e Roboré (1958), resultando em 31 acordos bilaterais.
    • Os acordos previram a demarcação de limites entre os dois países; modificação do tratado ferroviário de 1938 relativo à estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra; e, aproveitamento do petróleo boliviano, o que abriu espaço à “iniciativa privada brasileira”, mas não à Petrobrás.
    • Houve grande repercussão contrária aos acordos, que o consideravam “entreguista”, “estratégia arquitetada pelos trustes”, “atentado à Petrobrás e ao monopólio estatal de petróleo”. Assim, apesar de terem sido feito sob notas reversais, houve solicitação da Câmara para que fosse negada a ratificação de algumas reversais (parecer acolhido em 1960). Em 1961 o Executivo submeteu as reversais ao Congresso.