A retomada da hegemonia norte-americana

TAVARES, M. C. A retomada da hegemonia norte-americana. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 5, n.º 2, p. 5-15, abril-junho, 1985.

  • Até o final dos anos 1970 parecia impossível aos EUA, segundo a autora, conseguirem reafirmar sua hegemonia, mesmo sendo potência dominante. Conseguiram evitar que surgissem dois polos de poder econômico: na Europa, a Alemanha, e na Ásia, o Japão, ambos submetidos aos interesses americanos.
  • Outras circunstâncias da década de 1970 pareciam corroborar com a tese de que os EUA não conseguiriam reafirmar sua hegemonia:
    • o sistema bancário privado operava totalmente fora do controle dos bancos centrais.
    • o sub-sistema de filiais transnacionais operava divisões regionais de trabalho intra-firma, à revelia dos interesses americanos, o que gerava acirramento inter-capitalista, também desfavorável aos EUA.
    • a inexistência de um polo hegemônico na economia mundial estava desestruturando a ordem criada no pós-guerra.
  • Os EUA tentaram reverter isso através da diplomacia do dólar forte (1979): não permitiriam mais a desvalorização que vinha ocorrendo desde 1970 e declararam que o dólar se manteria como padrão internacional, restaurando a hegemonia de sua moeda. Essa restauração teve como custo uma recessão que durou 3 anos, quando houve violenta elevação da taxa de juros.
  • Diante de um intenso confronto de interesses e conflitos internos, os EUA fizeram e continuam fazendo uma política de várias faces visando a sua recuperação econômica, a partir dos anos 1980 com Reagan: utilizaram uma política keynesiana “bastarda”, “de cabeça para baixo”, combinada com política monetária dura.
  • Política contraditória: redistribuía a renda em favor dos ricos, aumentava o déficit fiscal e elevava a taxa de juros. Foi isso que fez os americanos se recuperarem e, além disso, submeterem os seus parceiros a desafiar militar e economicamente seus adversários.
  • O FED conseguiu retomar o controle do sistema bancário privado internacional, ao manter uma política monetária dura e forçar a supervalorização do dólar. Isso porque, depois da crise do México, o crédito interbancário moveu-se para os EUA e o sistema passou para o controle do FED. Assim, todos os grandes bancos internacionais estavam em NY financiando obrigatoriamente o déficit fiscal americano.
  • Os EUA apresentam, então, um déficit fiscal estrutural, decorrente de política financeira e armamentista “agressivas” e “imperiais”. O componente financeiro do déficit é crescente devido à rolagem da dívida pública, que se torna único instrumento de o país obter liquidez internacional forçada e canalizar movimento de capital bancário japonês/europeu para o mercado monetário americano.
  • De 1979 a 1981 os países relutaram em aderir a política ortodoxa americana, mas acabaram se submetendo, ou seja, ficaram todos alinhados em termos de políticas cambial, taxas de juros, monetária e fiscal. Todos os países foram obrigados a adotar políticas monetárias/fiscais restritivas e superávits comerciais crescentes, diminuindo potencial de crescimento endógeno e convertendo déficits públicos em déficits financeiros.
  • Japão: país que mais adotou políticas heterodoxas no pós-guerra e agora seu mercado financeiro está totalmente atrelado ao americano, situação que só pode mudar se o sistema bancário americano entrar em turbulência ou o dólar desvalorizar.
  • 1982-84: os EUA dobraram seu déficit comercial a cada ano e, junto com o recebimento de juros, permitiu que absorvessem transferências reais de poupança do resto do mundo. Suas relações de troca melhoraram e os custos internos caíram, diante do bom desempenho das importações. Estão modernizando sua indústria de ponta a baixo custo com equipamentos de último tipo e capitais de risco de toda parte do mundo.
  • Os EUA não precisavam de uma divisão internacional do trabalho (DIT) que os favorecesse, pois tinham uma relação econômica especial com o resto do mundo, exportavam e importavam basicamente tudo, mas agora (1985) usam sua hegemonia para instaurar uma DIT em seu benefício exclusivo e refazer sua posição como centro tecnológico dominante.
  • Observando-se a estrutura de investimentos de 1983/1984, percebe-se que os EUA estão concentrando esforços no desenvolvimento dos setores de ponta e submetendo a velha indústria à concorrência internacional de seus parceiros.
  • Obtêm apoio dos seus sócios exportadores, graças ao enorme déficit comercial e à retomada do crescimento; garantem apoio dos banqueiros graças às altas taxas de juros; e, garantem sua posição para o futuro com as joint-ventures dentro do país, que também ajudam a recuperar a economia.
  • A recuperação econômica americana está sendo feita com a técnica latino-americana/japonesa: financiamento do investimento com base no crédito de CP, endividamento externo e déficit fiscal. Não há inflação porque a moeda é hegemônica e sobrevalorizada. Estão usando, portanto, técnicas heterodoxas.
  • A heterodoxia também se manifesta na política orçamentária: trocaram despesas com bem-estar social por armas e fizeram redistribuição de renda em favor dos ricos, reduziram a carga tributária sobre a classe média e eliminaram impostos sobre juros pagos aos bancos para compras de consumo durável.
  • O endividamento das famílias passou a ser um bom negócio, porque parte da carga financeira da dívida é descontada no imposto de renda. Tomou-se muito crédito de CP para o ramo imobiliário e de bens duráveis, além de os EUA terem financiado investimentos no terciário e na indústria de ponta.
  • A taxa de juros estava em declínio por três motivos: absorção de liquidez internacional, posição menos ortodoxa do FED e queda da inflação. A queda da inflação é em virtude da baixa dos custos internos provocada pela sobrevalorização do dólar e pela concorrência das importações.
  • Desde 1982, as rendas de americanos no exterior não cobriam o déficit em transações correntes, porém a entrada de capitais estrangeiros fez essa cobertura. Aumentou o investimento em capital de risco e basicamente toda Europa e Japão estavam investindo nos EUA, gerando uma taxa de crescimento entre 7 e 8%.
  • Havia agora um excesso de capital e de “poupança externa”, devido ao resto do mundo ter obedecido à política conservadora (sincronização das políticas ortodoxas), que significou manter níveis baixos de investimento e de crescimento e forçar as exportações. Então nesse momento todos os países estavam com superávits menos os EUA.
  • Ao abrirem sua economia, provocaram maciça transferência de capitais do resto do mundo para os EUA e exatamente isto permite fechar o déficit estrutural financeiro do setor público. A novidade é que agora todo o mundo estava financiando o Tesouro, os consumidores e investidores americanos, ocorrendo transferência de “poupança real”.
  • Muitos pensavam que a alta taxa de juros frearia os investimentos, porém os americanos não estavam financiando o investimento através do mercado de capitais; o mercado relevante é o monetário; eles estavam substituindo o tradicional endividamento de LP por crédito de CP ou recursos próprios e capital de risco.
  • Os juros podiam baixar desde que mantivessem um ligeiro diferencial com os países europeus, isso porque a dívida pública americana estava sendo financiada por uma corrida de todos os capitais bancários do mundo para os EUA.
  • Os EUA não precisam resolver seu problema de financiamento interno enquanto a taxa de crescimento dos países europeus for inferior à taxa americana. Até então os países do resto do mundo estavam investindo preferencialmente nos EUA, enquanto as políticas nacionais destinam-se a segurar as estruturas produtivas industriais.
  • Entretanto, ao mesmo tempo em que aumentava a concorrência inter-capitalista, via-se uma melhora na eficiência das indústrias modernas do Japão e de alguns países da Europa. Mas paralelamente os EUA aproveitavam essa situação modernizando sua estrutura produtiva às custas por exemplo da América Latina.
  • Japoneses e europeus responderam aliando-se forçosamente aos Estados Unidos. A Europa continuava paralisada e alinhada por questões de segurança e estratégia, mas também por sua incapacidade de fazer uma política econômica comum na época.
  • Caso os EUA consigam manter sua política até 1988, a retomada da hegemonia terminará convertendo a economia americana numa economia “cêntrica” e não apenas dominante:
    • será uma década de absorção de liquidez, capitais e crédito do resto do mundo;
    • terão alcançado crescimento à custa da estagnação relativa de seus competidores capitalistas;
    • terão financiado modernização do terciário e de seu parque industrial aproveitando as “economias externas” (periferia ou não).
  • Os problemas estruturais americanos dizem respeito ao reajuste de sua infraestrutura básica, o que requer processo prévio de consolidação bancária e de reestruturação da dívida interna americana.
  • Se os EUA fizerem uma “reciclagem” da sua estrutura financeira, então o dólar poderia deslizar outra vez. Isso não era recomendável até 1988, pois o dólar desvalorizando geraria fuga maciça de capitais e o sistema financeiro poderia quebrar.
  • Situação do Brasil se essas hipóteses se confirmarem:
    • condenado a renegociar a dívida externa ano após ano;
    • se verá forçado a pagar pelo menos parte dos juros aos banqueiros internacionais e tentar capitalizar a outra parte;
    • o país precisaria acumular um superávit comercial equivalente ao montante de juros devidos: isso não ocorria porque mantínhamos um superávit com os EUA superior à remessa de juros aos banqueiros americanos, mas inferior ao pago ao conjunto do sistema bancário internacional;
    • o país está totalmente subordinado à política econômica americana em política de exportação, cambial e de dívida e é forçado a fazer exatamente o contrário dos EUA, perdendo nas relações de troca e inflação.
    • em alguns mercados somos supridores de 2ª linha de produtos agrícolas, nos espaços abertos pelas flutuações cíclicas da oferta americana, aí onde a concorrência será mais acirrada pelo mercado americano.
  • Do ponto de vista do IED (investimento estrangeiro direto) americano, a prioridade são os setores de informática, bancos e armas, sobre os quais pretendem ter uma hegemonia incontestável e que apresentam maiores probabilidades de expansão no LP, para capitais americanos já sediados no país.
  • A autora deixa no ar, por fim, um questionamento sobre a soberania brasileira (“devedor soberano”) diante de sua dívida externa sem ceder nos seus próprios interesses, em suma reconhecer a realidade mundial, sem se deixar intimidar por ela.